A mitologia do Caos na realidade sertaneja
Rangel Alves da Costa*
No sentido usual, caos geralmente tem o significado de desordem, bagunƧa, confusĆ£o. AtĆ© mesmo em livros importantes, numa leitura despretensiosa, o seu conceito pode passar uma ideia de desorganização: āNo princĆpio, Deus criou os cĆ©us e a terra. E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo.ā (GĆŖnesis, 1:1-2). Em outras palavras, um caos. Só trevas, desordem, feiĆŗra. “Antes de existirem o oceano, a terra e os cĆ©us cobrindo tudo / a Natureza mostrava apenas uma Ćŗnica face no mundo inteiro. / Caos era seu nome: uma massa bruta, informe, / nada mais que um peso inerte e, nele acumuladas, / as sementes das coisas, num grande amontoado.” (OvĆdio, āMetamorfosesā, vv.5-9). Como observado, no princĆpio dos tempos as coisas que existiam eram desordenadas, largadas na sua própria existĆŖncia, atĆ© que em um dado momento uma ordem se manifestou e comeƧaram a surgir os elementos que passaram a determinar o mundo.
Assim, o estado primordial, primitivo do mundo Ć© o Caos, existente desde tempos imemoriais, sob uma forma vaga, indefinĆvel, indescritĆvel, na qual se confundiam os princĆpios de todos os seres particulares. Ć nesta perspectiva que o Caos Ć© abordado pela mitologia grega. Nesta, este princĆpio mĆtico era considerado o estado nĆ£o organizado, ou o nada, de onde todas as coisas surgiam. Isto porque os gregos nĆ£o acreditavam num Deus criador. Segundo eles, se houvesse essa forƧa criadora Ćŗnica e superior nĆ£o teria deixado desordenada e atĆ© contraditória tamanha variedade e imensidĆ£o de fenĆ“menos por ele mesmo criados. DaĆ terem concebido o Caos, como algo jĆ” existente, porĆ©m massa rude a ser organizada.
Após essa breve abordagem, inevitavelmente haverĆ” de surgir a seguinte indagação: o que Ć© que tem a ver o Caos mitológico grego com a realidade sertaneja, com a existĆŖncia, por exemplo, de Nossa Senhora da Glória, Porto da Folha, Monte Alegre, PoƧo Redondo e CanindĆ© de SĆ£o Francisco, municĆpios do alto sertĆ£o sergipano? Adiante-se, entĆ£o, uma primeira resposta: o Caos moderno.
O Caos sertanejo moderno pode ser definido como as forƧas existentes e as possibilidades presentes, mas que se transformam em nada diante das ādivindadesā polĆticas superiores que deixam as riquezas contidas no homem, na natureza e nos seus elementos jogadas Ć própria sorte, ao desalento, no esquecimento e na escuridĆ£o do mundo em transformação. Pode ser visto ainda como as conseqüências advindas da omissĆ£o dos poderes pĆŗblicos, atravĆ©s dos seus agentes, na aplicação efetiva de polĆticas continuadas para a melhoria das condiƧƵes de saĆŗde, de educação, de desenvolvimento e de qualidade de vida do sertanejo, sem que isto seja tido como um favor para fins eleitoreiros. Ou ainda como o abismo criado pelas contradiƧƵes entre a riqueza da regiĆ£o e a pobreza a que Ć© relegada. Tudo isso torna o sertĆ£o ainda em estado de Caos, e sem grandes perspectivas de um ordenamento que lhe garanta o pleno desenvolvimento.
Assim, se no princĆpio era o Caos, este continua no sertĆ£o sergipano. NĆ£o se sabe como vai ser o fim desse estado de absurdez, de desordem e de um tudo a ser construĆdo juntando os ricos pedaƧos existentes. Ć tudo imprevisĆvel, principalmente porque o povo parece que acostumou a ser vitimizado, tolerante com as arrogĆ¢ncias impostas pelos polĆticos, negligente em ver nada ser feito e nada reclamar, omisso na luta pelos seus direitos e no resguardo de suas prerrogativas de cidadĆ£o. AlĆ©m disso, Ć© bem possĆvel tambĆ©m que nĆ£o queira enxergar acontecimentos rotineiros que demonstram o atraso latente: a crise econĆ“mica, o desemprego, o fechamento ou incapacidade de funcionamento dos pequenos hospitais e maternidades, a falĆŖncia do comĆ©rcio, a inexpressiva circulação de moeda, a inexistĆŖncia de um mercado de trabalho para absorver a mĆ£o-de-obra existente, e a falta de polĆticas pĆŗblicas mais efetivas por parte das administraƧƵes municipais. A verdade Ć© que a comunidade constrói ou convive com o caos e nĆ£o tem a quem recorrer.
Aliada a esses fatos injustificĆ”veis, e que Ć© tida por muitos como o problema maior, estĆ” a seca. Esta e, em virtude desta, a destruição de rebanhos e plantaƧƵes e a escassez de Ć”gua atĆ© para beber, Ć© quase sempre vista como a fonte geradora de todos os sortilĆ©gios que afligem os sertanejos. Contudo, se por um lado o fenĆ“meno da estiagem Ć© encarado pelo caipira como uma desgraƧa, por outro viĆ©s transforma-se na melhor oportunidade para que os polĆticos passem a exercer suas nefastas aƧƵes da utilização da misĆ©ria do povo para fins eleitoreiros, doando esmolas de Ć”gua e humilhantes cestas bĆ”sicas.
Desse modo, o Caos instalou-se e continua ativo e vigente no sertĆ£o. O mitológico transformou-se em lenda, imaginação, porĆ©m a desordem sertaneja de cada dia continuarĆ” enquanto o mundo for mundo ou atĆ© quando o próprio sertanejo realmente faƧa valer as palavras de Euclides da Cunha e seja acima de tudo um forte, passando, antes de tudo, a saber escolher seus governantes. AĆ seria um Caos para determinados polĆticos acostumados a propagar a desgraƧa para tirar proveito próprio.
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com