A SECA DE 2015

A SECA DE 2015

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Rangel Alves da Costa*

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Deve ser um segredo guardado a sete chaves pelos centenÔrios sertanejos que ainda habitam naquela região, mas muitos comentam ao pé do ouvido que hÔ, com certeza, uma profecia sertaneja preconizando que a cada cem anos uma devastadora estiagem irÔ assolar todas as redondezas. A seca viria destruindo e secando tudo, tangendo da vida animais e plantas, amedrontando o homem mais destemido e demonstrando todas as fragilidades dos viventes diante das forças revoltosas da natureza. Isto estava escrito num pedaço de umburana, guardado dentro de um alforje carcomido e escondido numa gruta nas proximidades da divisa entre Canindé e Poço Redondo. Conto assim porque assim me contaram.

Pois bem. Outro dia dois velhos amigos iam conversando por uma estrada e comeƧaram a prosear sobre o assunto, e foi quando um deles parou subitamente e disse espantado: ā€œDanou-se cumpade, pois se dizem que uma das maiores secas foi a de 1915, a quem vem aĆ­ vai ser em 2015, que Ć© quando completa cem anos. Pelas conta, daqui a uns cinco anos ou coisinha maisā€. E seguiram caminho acima, visivelmente preocupados, sem trocar mais nenhum pĆ© de palavra.

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Com efeito, a seca de 1915 foi uma das mais terrĆ­veis que jĆ” se espalhou pela regiĆ£o nordestina. Foi a inclemĆŖncia da devastação de tudo acima e abaixo da terra, do desespero do homem e da dizimação dos rebanhos, da fome e da sede alastradas em progressĆ£o alarmante, das muitas e muitas levas de retirantes abandonando seus lugarejos jĆ” quase mortos como o próprio homem. Foi nessa estiagem que, para impedir que os retirantes se dirigissem Ć  capital, o governo cearense criou campos de concentração nos arredores das grandes cidades, nos quais recolhia os flagelados. A varĆ­ola fez centenas de mortos no Campo do AlagadiƧo, próximo a Fortaleza, onde se espremiam mais de 8 mil pessoas; a falta de condiƧƵes sanitĆ”rias e de comida completou o trĆ”gico quadro. O sofrimento das famĆ­lias durante essa estiagem Ć© retratado por Rachel de Queiroz no seu romance ā€œO quinzeā€, um drama instigante impondo situaƧƵes dolorosas em meio Ć  desolação provocada pela seca.

Nos dias atuais, a catastrófica previsĆ£o estava novamente prestes a acontecer no semi-Ć”rido. ā€œDe cem em cem anos virĆ” um sol diferente dos outros, mais quente, mais abrasador e mais duradouro, e tudo o que estiver abaixo dele, seja homem, seja animal ou planta, se curvarĆ” em piedade e aflição, pois nĆ£o haverĆ” sequer uma gota d’Ôgua caindo dos cĆ©us para aliviar o sofrimento da estiagem, e tudo serĆ” seco e feioā€, eis a profecia.

Em 2014 comeƧaram a aparecer os primeiros sinais. Nesse ano, a chuva tĆ£o esperada no dia 19 de marƧo nĆ£o veio, muito menos avistava-se qualquer aparĆŖncia de nuvens carregadas no horizonte. O sertanejo acredita que se chover nesse dia – dia de SĆ£o JosĆ© – Ć© sinal de que haverĆ” um bom inverno. Com os dias passando e as chuvas sumindo, o matuto comeƧou logo a desconfiar de que o pior certamente viria.

JĆ” perto do fim do ano, lĆ” pelas vizinhanƧas do natal, Pedro, pai de cinco filhos pequenos, enfileirados na idade, dono de quatro vaquinhas num terreno de beira de estrada, madrugou com uma tristeza de dar dó e, após mirar o cĆ©u iluminado, decidiu buscar uma esperanƧa numa prĆ”tica muito antiga dos velhos sertanejos: procurou um ninho de rolinha pelas Ć”rvores, mas nada; só encontrou um escondido no chĆ£o. EntĆ£o veio a certeza: ā€œA rolinha sempre faz o ninho atrepado, mas como ela sabe que nĆ£o vem chuva, ela faz no chĆ£o. Ɖ certeza de estiagem prolongadaā€.

Dito e certo, pois quando entrou o ano de 2015 a seca jÔ começou a mostrar sua feição assustadora. A cada dia que passava as esperanças iam esvaindo-se, os tanques e cacimbas começaram a enlamear, os pastos ficaram cinzentos, os animais emagreciam e deixavam suas carcaças pelos barrancos, veio a fome, a sede, o medo. Era a seca em toda sua plenitude. João e Maria venderam tudo o que restava e foram embora desnorteados; encontraram Belarmino caído, morto, por cima da carcaça da única vaquinha que tinha; de tanto ouvir seus filhos reclamar que tinham fome, Pedro enlouqueceu e invadiu uma prefeitura, sendo preso e judiado; as ruas das cidades encheram-se de pedintes esfarrapados; ninguém mais falava de rico e de pobre. Era a socialização da miséria.

O governo federal logo criou um fundo especial de emergência para combater os problemas causados pela devastação nordestina; mais uma vez foram surgindo frentes emergenciais de trabalho para dar algum ganho ao homem carente de tudo; programas de bolsa disso e bolsa daquilo foram criados ou ampliados para atender às demandas das famílias empobrecidas; da capital, caminhões e mais caminhões chegavam com as esmolas oficiais, com o mesmo fubÔ de milho, feijão turbinado de veneno, arroz de quinta categoria, mortadela e alguns itens mais para enganar a fome, e principalmente o próprio homem. Políticos não arredavam o pé do lugar, pois dizem que o homem fragilizado é mais fÔcil de ser enganado.

Porém, diante desse quadro dantesco surgiu, enfim, uma coisa boa, uma solução para resolver dali por diante, e de uma vez por todas, as constantes ocorrências daqueles mesmos problemas: o governo federal, em parceria com os governos estaduais, jÔ tinha um projeto pronto, de confiÔvel eficÔcia, para dar um basta nas conseqüências maléficas das estiagens. JÔ tinha até nome: Qualidade de Vida no Convívio com a Seca. Nome bonito, assinado com caneta de ouro. No início do próximo ano, com a mÔxima certeza, passaria a ser desenvolvido na região.

Alguém jÔ ouviu falar dessa mesma história? Pois é, ainda no período do Brasil Império, o Imperador Pedro II prometeu que venderia até as jóias da Coroa para resolver o problema das secas. Nem vendeu nem o problema jamais foi resolvido, mas não por falta de promessas, pois a cada nova estiagem os políticos e governantes vêm com a mesma ladainha, com a mesma conversinha de que dali em diante o sertanejo vai conviver com a seca de forma digna e proveitosa. Tudo conversa pra boi dormir, ou fechar os olhos de morte nos pastos sertanejos.

Ɖ sempre a mesma história. E assim sempre serĆ” daqui a mais cem, duzentos, trezentos anos, pois a profecias nĆ£o mentem, mas os homens sim.

Advogado e poeta

e-mail: rangel_adv1@hotmail.com