Ações afirmativas no processo educacional em espaço informal

Mônica Flor Ramos

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No Brasil, as políticas de ações afirmativas contribuem para desconstruir o mito – engendrado e perpetuado – da democracia racial, afirmando o direito das comunidades negras na preservação de uma identidade étnico-racial junto com a necessidade de acesso igualitário na sociedade. Nessa direção, se reconhece como uma ação afirmativa a implementação da Lei 10.639/2003. Vislumbra-se um questionamento da própria historiografia brasileira que deve ser (re) pensada no sentido de evidenciar a presença negra. O trabalho mostra o projeto Quizomba da Cidadania, realizado nas Escolas de Samba de Novo Hamburgo/RS, onde crianças das comunidades participam de oficinas. Na condição de acadêmica do curso de História, que atua neste, trago o relato da experiência, focando, especialmente, nas questões relativas às implicações das ações afirmativas na aprendizagem e escrita da história e nas ações que podem ser desencadeadas através do ensino, pesquisa ou extensão.

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Palavras-chave: educação, identidade, ações afirmativas.

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A História mundial é marcada por lutas, onde nos inserimos em uma sociedade marcada por resquícios dessas, que para além da dimensão econômica, relacionam-se com a dominação e poder de sobreposições culturais. No Brasil, não é diferente. Aqui, o discurso em torno da “mistura” e da fusão de culturas teve a intenção de fundar e homogeneizar imagens de brasilidade e de uma cultura nacional. Esse, no decorrer do século XX, é objeto de reflexão permanente no pensamento sócio-cultural brasileiro.

A questão da identidade vem sendo debatida, por alguns autores como algo ambíguo e fragmentado.

“[...] As velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o individuo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado [...]” (HALL, 2001:7).

Perante a constante mutação nas identidades e a formação de novas, busca-se a preservação de identidades étnico-raciais como forma de afirmar os direitos através da valorização das raízes e visibilidade das diferenças sociais.

Atualmente, o debate ofuscante e acalorado acerca do reconhecimento da diferença, da ruptura com o discurso da invisibilidade social e da “negação” de uma identidade étnico-racial referente aos negros não é por acaso. As políticas de ações afirmativas, hoje, transcendem as fronteiras do movimento negro, permitindo o debate sobre o assunto por grande parte da sociedade nacional, que durante muito tempo permanecia mergulhada no mito da democracia racial. Torna-se banal a análise das diferenças sociais e econômicas quando pensamos que a exclusão sofrida por estes sujeitos é decorrente da herança de um passado escravocrata que perpetuou a desigualdade entre negros e brancos.

As ações afirmativas desempenham, de certa forma, um papel pedagógico relevante. Isto porque nos estimulam a estender o olhar não apenas a um pequeno grupo, mas sim a todo o conjunto da sociedade brasileira, olhando de forma crítica para a produção historiográfica e para os dados estatísticos que nos mostram os índices de desigualdade e exclusão.

Certa vez, em uma conversa informal, relatava a opinião da importância da lei 10.639/2003. Houve um questionamento pelo sujeito, negando esta importância uma vez, que segundo este, a História que realmente acrescentaria algo na sociedade seria a História da Europa, onde aconteceram eventos realmente marcantes e que interessaria serem estudados. O olhar deste - que é um sujeito, mas reproduz o pensamento coletivo - traduz toda a importância desta lei. Uma delas, primeiramente, refletida na escola, por iluminar o pensamento social eurocêntrico. Os culpados por tais preconceitos não cabe a análise neste trabalho. A grande questão é a formação nas escolas que, até então, se eximiram do ensino do Continente Africano e da História deste negro no Brasil como membro constituinte da cultura brasileira. Através desta ação afirmativa, busca-se o reconhecimento das raízes africanas juntamente com o sentimento de pertencimento cultural do negro brasileiro na formação da cultura brasileira.

Embora a historiografia brasileira atual apresente novos olhares temos, ainda, a reprodução desses pensamentos no ensino das escolas no país. Uma vez que se acentuam as diferenças sociais se fez necessária a intervenção do Estado com a proposta da lei 10639/2003. O movimento negro com sua ação de resistência tem um espaço legitimado através da lei, citada anteriormente, com a oficialização e obrigatoriedade da História da África e Cultura africana nos currículos escolares. A importância desta incorporação nos currículos escolares sobrepuja o fato da inserção. Apresenta, além do reconhecimento das raízes africanas para o entendimento da História do Brasil, a mudança no olhar historiográfico juntamente e da bibliografia, passando aos alunos da nova geração a desmistificação da democracia racial sob o ângulo da visualização das raízes africanas como uma soma na igualdade de direitos étnicos para que a sociedade brasileira tenha uma horizontalidade.

O projeto

O projeto Quizomba da Cidadania, iniciado no dia 03 de março de 2007 com recesso no dia XX, realiza o papel de evidência ao negro, de nivelar as diferenças econômicas, sociais e educacionais, visando o resgate de suas raízes através do reconhecimento étnico-racial e do acervo cultural de quatro Escolas de Samba do Município de Novo Hamburgo: Escola de Samba Aí Vem os Marujos, (Escola de Samba) Sociedade Cruzeiro do Sul, Escola de Samba Protegidos da Princesa Isabel, Escola de Samba Império da São Jorge.

Nesses espaços, mediante a práticas pedagógicas, realiza-se através de quatro oficinas – Percussão, História, Memória e Cidadania, Dança, Arte e Criação – visões de mundo baseadas na identidade cultural e etnicidade negra.

O fato da inserção dos participantes remete ao espaço usado para envolvimento pedagógico, por ser um local conhecido e constantemente freqüentado pelas comunidades da região. As Escolas de Samba representam um fator legitimador significativo. Vindo dessa lógica, o projeto com a oficina de História, Memória e Cidadania, através dos acadêmicos e professores do Centro Universitário Feevale juntamente com as comunidades, fornece visibilidade, integração e auto-estima a um grupo, até então, com sua história e com sua identidade étnico-racial oculta dentro de uma cidade com fortes tradições alemã. Acadêmicos, neste atual momento de necessidade reflexiva coletiva, vêem-se incumbidos na tarefa da realização de práticas socio-acadêmicas no sentido da valorização de culturas e da valorização da diversidade étnica no Brasil. Esses espaços, da alegria e de festa de um grupo, usa-se para o resgate das manifestações culturais, identitárias e cotidianas.

O lúdico e a expressão como matriz de troca: a prática

“[...] Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e levado bem além de todo o começo possível [...]” (FOUCAULT, 2000:5).

A metaforização do cotidiano através dos discursos no nível de uma proposição (FOUCAULT, 2000:14) usados, serve como atrativos nas oficinas. A partir de então, a História é trabalhada sob os aspectos vivenciados e cotidianamente velados. As oficinas dirigidas a crianças, entre 8-18 anos, objetivadas com a reorganização de fatos marcantes na história visualizando a identidade étnico-racial e a importância dada pela sociedade de cada período com as implicações materiais e imateriais para a formação da sociedade atual, direcionadas do foco local para o âmbito mundial percebendo as relações diárias dos participantes e articulando com os diferentes saberes acadêmicos.

O ser negro aparece na prática das relações semanais nas oficinas. O uso pejorativo de adjetivos nas relações entre os integrantes apresenta o direcionamento do trabalho, sendo que o fator cor é usado para troça e zombaria identificando a desvinculação que estas crianças demonstram com sua afro-descendência.

A vivência deste tipo de extensão proporciona, além da maturidade dos acadêmicos com a oportunidade de aprofundamento sobre o assunto, a permuta de experiências, vivências e construções identitárias nas relações semanais ocorridas nas Escolas de Samba com as comunidades, fomentando discussões para o fortalecimento e criação de políticas públicas reparadoras e inclusivas.

Considerações Finais

O reconhecimento da composição de negros e brancos não referencia a separação ou a inclusão. Infere-se em não velar a diferença e para se construir a igualdade. A busca das raízes culturais e das identidades étnico-raciais não representam a inserção da mesma cultura ou na reincorporação da cultura de outras épocas.

As políticas de ações afirmativas em projetos sociais como o Quizomba da Cidadania da cidadania representam a convivência com os problemas a serem enfrentados, com a resistência dos alunos e pais na nova maneira de se estudar a história juntamente com a importância da ação e envolvimento com as comunidades e movimentos negros. O aspecto é jogarmos os saberes envolvendo a sociedade nesse debate.

Ao evidenciarmos na pedagogia certos preconceitos ocasionados devido a perda ou a fragmentação de identidades étnicas se faz necessária a relação da falsa igualdade, que circunda o pensamento coletivo, para a construção de uma verdadeira democracia racial. A sociedade brasileira ainda necessita desta reflexão.

Referências Bibliográficas:

ANDRADE, Mário de. Poesias completas. São Paulo: Martins, 1955. (Obras completas de Mário de Andrade2).

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. 13. ed. Rio de Janeiro: Editora Universidade de Brasília, 1963.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso aula inaugural no collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola, 2000.

GARCÍA CANCLINI, Néstor. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. 4. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2001.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 5. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. da UFMG; Brasília, DF: UNESCO, 2003.

LOPES, José Rogério. Cultura e ideologia. São Paulo: Cabral, 1995.

MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005. (Textos filosóficos (Vozes)).

MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.

NUNES, Margarete Fagundes (org). Diversidade e Políticas Afirmativas: Diálogos e Intercursos. 2. ed. Novo Hamburgo: Feevale, 2006.

VENTURA, Roberto. Casa-grande & senzala. São Paulo, SP: PubliFolha, 2000. (Folha explica; 9.).

[1] Acadêmica, sétimo semestre, do Curso de História do Centro Universitário Feevale, participante das atividades de Extensão do Programa Identidade, Gênero e Relações Interétnicas/NIGERIA no projeto Quizomba da Cidadania da Cidadania.