Adeus

Adeus

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Quanto mais o tempo nos afasta dos nossos criadores ─ que nos fizeram às suas imagens e semelhanças ─ mais nos assemelhamos a eles. Vale lembrar que Jacó não saiu no tapa com o criador do universo (Gn 32), sim com um ser celeste que mudou o nome dele para Israel (aquele que lutou com um ser celeste). Uns carolas têm o hábito de traduzir “el” por deus, para não entregarem o ouro. Assim, vamos também nos afastando das práticas rituais das sociedades arcaicas. O sentimento de insegurança provocado pela ausência dos deuses, que buscava apoio na religião, vai sendo compensado pelo gradativo amadurecimento da parte exilada que eles deixaram em nós. Nesse sentido, somos filhos dos deuses ou seres celestes, não de Deus, esse ser abstrato e supremo que, posteriormente, se inventou para “explicar” tudo.

“Os deuses não revelam todas as coisas, desde o princípio, aos homens, mas os homens através do estudo chegam a seu tempo a melhores conclusões”. Cecil Maurice Bowra

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Através do estudo só temos a perder as ilusões. Toda essa reclamação que recai sobre uma sociedade tecnológica e industrializada que se despede dos valores do passado, terá que se transformar em conformação. Quem já teve a curiosidade de entender os motivos da fusão do pensamento judeu com o pensamento helênico, tipificado na obra de Filon, de Alexandria, e em seguida adotado pelo cristianismo, perceberá que a partir dessa concepção helenística um novo conceito da divindade se estabeleceu. No entanto, antes dessa novidade histórica, todas as matrizes religiosas apontavam numa só direção. Não era para o Norte, nem o Sul, nem o Leste nem o Oeste. Apontavam para cima, para o céu. Das religiões mais primitivas às mais elaboradas isso não muda. Os deuses vieram e voltaram para o céu.

Religar com os deuses é a expectativa religiosa. Não romper a ligação que a idéia do sagrado instituiu ─ “sagrado” significa “o que pertence aos deuses” ─, significava nas sociedades arcaicas manter algum tipo de contato imaginário com esses indivíduos, que demonstrasse o sentimento humano de pertinência para com eles. Como o Homem foi criado por eles, por eles e para eles deveria viver. Inclusive, na esperança vã de que os deuses se apiedassem da nova criatura e a resgatasse para o mundo de onde vieram. Só que esses caras se foram e nunca mais voltaram para resgatar ninguém ou reclamar propriedade.

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Para evitar a crueza sanguinolenta por trás do significado da palavra “religião” ─ os deuses eram atraídos como moscas pelo cheiro da carne ─ e da sua inquietante história, muitos preferem argumentar a respeito de uma inegável inteligência cósmica ou, por exemplo, teorizar sobre a física quântica (que quase ninguém entende) na esperança de mandar para os confins do cosmo esse pesadelo da Antiguidade. As versões mais simples nunca são as mais populares porque inteligências privilegiadas devem ser inatingíveis. Quanto menos compreensível for a origem do Homem, mais verdadeira fica parecendo. Daí a conveniência de embrulhá-la com teorias da origem do universo num pacote de aniversário, como um presente de grego, digamos assim.

Todavia, a nossa própria experiência cotidiana assevera que uma possibilidade não anula necessariamente outra. A origem do Homem está ligada aos deuses, cuja origem está ligada ao universo. Mas qual origem não está? As atitudes humanas não nos parecem menos inexplicáveis do que eles são para nós. São nebulosas as histórias sobre esses seres celestes e não especificam propósitos ou estirpes desses indivíduos vindos sabe-se lá de onde. Mas uma coisa é certa, a diferença entre o sagrado e o profano só existe para os homens, não para eles. Basta pensar que daqui a algumas décadas, ao menos tecnicamente, nos será possível repetir o mesmo feito em outro planeta. Bastaria um astronauta engravidar uma jeitosinha por lá. Os portugueses se divertiram com as índias e elas gostaram. Que mal havia nisso?

A atração física, a força do instinto, especialmente sob uma demanda reprimida pelas longas viagens, pode povoar todo universo. Por outro lado, o domínio da engenharia genética é capaz de superar dificuldades na escala da evolução. Só não se mistura material genético humano com de algum animal porque temos impedimento moral por aqui. Mas lá fora, tudo pode mudar de figura. Vai depender mais da necessidade do que da moralidade na hora das decisões. A justiça terrena estará longe demais para tomar conhecimento e agir. Se não caírem no ouvido do povo, os interesses militares nunca passam pelo crivo da justiça. Os senhores dos exércitos tomam decisões em outra esfera, o que não impede que devida a uma denúncia um funcionário da justiça enviado pelo Ministério Público, um satã, venha incomodá-los quando o mal já estiver feito.

Deus significa “brilhante” e pode haver uma infinidade de explicações para isso, tanto na teologia quanto na ciência e na tecnologia. No entendimento desta palavra apenas essas últimas possibilidades ainda não foram levadas em conta seriamente. Desde quando Zeus virou Deus, ficou parecendo que somente um entendimento seria possível. A filosofia grega nasceu na Ásia Menor, de onde recebeu conhecimentos vindos da Mesopotâmia e os reformou como era o costume grego. O judaísmo, refratário a reformas, também veio de lá. Por isso tinham aspectos diferentes: um aspirando pela compreensão e outro exigindo a obediência. Contudo, havia uma identidade entre essas culturas em conflito ─ helenismo e judaísmo ─ que Filon soube bem aproveitar, na tentativa de aliviar as tensões helênicas sobre a comunidade judaica de Alexandria. Filon foi brilhante na utilização a sua herança divina, como foram outros tantos indivíduos na história da Humanidade.

No sentido figurado o termo “brilhante” se refere a algo admirável e incomum produzido por alguém. Uma “inspiração divina” ou “obra do Espírito Santo” costuma-se dizer também.

“Nenhuma idéia brilhante consegue entrar em circulação se não agregando a si qualquer elemento de estupidez. O pensamento coletivo é estúpido porque é coletivo: nada passa as barreiras do coletivo sem deixar nelas, como real de água, a maior parte da inteligência que traga consigo.” Fernando Pessoa.

A dificuldade da assimilação de uma informação não identificada com os padrões estabelecidos, padrões que dão sustentação a uma determinada cultura e a sua verdade, é óbvia como sintoma, mas desconhecida como causa pelo grande público. A descoberta da causa implica na quebra dos costumes instituídos por esses padrões, uma atitude intelectual que não é vista com bons olhos ─ Quem não se alinha ao grupo, apregoa o caos ─, mas, por outro lado, responde a tradição helênica da lapidação permanente dos conhecimentos que fundamentam a nossa cultura. Não há como evitar.

O brilho da centelha divina se revela em mais de uma concepção desta palavra (divina). Tudo é produto do universo, ao universo está ligada a origem de homens e deuses. Pode-se presumir que esta seja a última realidade, mas não a única, como preferem alguns quânticos entendimentos ou do tipo. Os deuses (seres celestes) são reais, as interpretações é que variam. A divindade, a qual me refiro, está em nós com tudo o que temos, compartilhando de nossas vidas com o desejo de se ir daqui. O escapismo humano se fez e se faz do inconformismo dessa herança divina.  Ela não se reconhece nesse mundo, na sua inexorável realidade.

De acordo com nossa arquitetura mental, o que temos a perder são somente as ilusões. É o que a ciência vem fazendo ao longo do tempo com a arte de desmontar interpretações supersticiosas com explicações acessíveis. Ciência significa conhecimento e não uma afronta a religião ou a crença de ninguém. Foi a opção escusa pela ocultação que criou hostilidade entre a crença e o conhecimento. Crença e conhecimento são complementares: quando termina um, começa o outro. O envelhecimento de uma convicção a tornar naquilo que ela um dia ela veio transformar. O conhecimento é uma crença amadurecida que já não pensa em brigar. Não se ofende barato, é gentil e cede o lugar de bom grado.

Não existem perdas, apenas ganhos com a experiência quando assim se quer. Portanto, às concepções arcaicas que ainda sustentam o modelo de agora, longe de sentimentos menores, só teremos a dizer:

Adeus.