Ancestrais: uma introdução à História da África Atlântica, Mary Del Priore e Renato Pinto Venâncio

Publicado originalmente em Revista África e Africanidades

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Em Janeiro de 2003, uma das primeiras ações do presidente Luís Inácio Lula da Silva foi sancionar a Lei 10.639 que trata da obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas do Ensino Fundamental e Médio. Essa lei é propositora de um grande desafio, tanto aos profissionais de educação quanto ao mercado editorial brasileiro, ambos despreparados para atender à demanda de conhecimento sobre o continente africano, bem como sua contribuição na formação de nosso país.
Nesse contexto, Mary Del Priore e Renato Pinto Venâncio trazem a público o livro “Ancestrais: uma introdução à história da África Atlântica”, texto que contribui na difusão do conhecimento produzido por especialistas na área de História da África. Os autores tiveram a felicidade de escrever um texto com linguagem agradável, absolutamente informativo e fartamente ilustrado com tabelas, mapas e gravuras de época, na sua maioria representações do continente africano feitas por europeus, imagens de estatuetas e máscaras. A obra também é amparada em vasta bibliografia internacional o que indica o grau de comprometimento dos autores, mesmo não sendo africanistas, além do fato de que na época de sua publicação ainda havia, e há hoje, muito que ser pesquisado no Brasil sobre essa temática. Esta obra é dividida em 8 capítulos a saber: O berço africano; Escravidão, tráfico & resistência; Africanos vistos pela Europa; Um passeio na Senegâmbia; Costa do Ouro do Marfim e dos Escravos; Congo & Angola; e Apogeu & declínio.
O primeiro capítulo é usado pelos autores para fazer uma apresentação da África, seus reinos e sua cultura. São utilizados três recortes: o primeiro de ordem geográfica, o segundo a partir das relações de poder e prestígio que se efetivavam simultaneamente a partir da terra e da linhagem e o terceiro trata da diversidade étnica do continente africano. O seguinte trecho é digno de citação:
A terra era, na maior parte da África, um bem coletivo. Inútil, portanto, conserva-la no seio da família por uniões monogâmicas. Cada chefe local passava ao pai de família um terreno para cultivo. Este, por sua vez, passava a ser devedor ou a pagar tributo em espécie ou trabalho ao chefe. Desta perspectiva, mais pertinente era ter muitas mulheres e muitos filhos que cultivassem o solo gerando (...) uma ‘economia da poligamia’ (PRIORE, VENANCIO, 2004: 13).
No segundo capítulo, os autores tratam de como o continente africano foi denominado desde a antiguidade. Constatam que o termo África é uma invenção européia, ou seja, de fora, que nunca conferiu nenhum sentido de unidade ou identidade aos africanos. Em outras palavras o termo África não significava nada para as populações desse continente. Já a denominação África Atlântica, relacionada com a África que tem a ver com o Brasil, nasceu do contato com os europeus na primeira metade do século XV, período em que pioneiramente, os portugueses iniciam as expedições de circunavegação do continente. Um ponto relevante é enfatizar que a escravidão negra não foi inventada pelos europeus e já existia no continente africano. O trecho a seguir fundamenta essa idéia: “Na África Atlântica, a escravidão era doméstica ou (...) ‘de linhagem’ ou ‘de parentesco’. (...) o trabalho cativo, nessas paragens, somente após a chegada dos colonos europeus se tornou comercial (...) (PRIORE, VENANCIO, 2004: 36)”. Além de também citar documentos que descrevem a rotina do tráfico os autores vão mostrar algumas peculiaridades dos navios negreiros e descrever as formas de resistência possíveis durante o embarque e nas viagens.
O terceiro capítulo versa sobre a forma que os africanos são vistos e descritos por viajantes europeus desde o século XIV. Os termos África e Etiópia serviam para designar o continente africano, tanto em textos eruditos quanto na tradição popular. Na Europa, a cor negra estava remetida à escravidão e ao mal e o Diabo sempre era representado nessa cor. Os mapas medievais dividem a terra em três partes: Ásia, Europa e África; onde essa última também é representada por cidades que misturam fantasia e realidade e abrigam criaturas fantásticas. Nas parábolas medievais essa assimilação do etíope ao demônio também está ligada ao clima do continente, uma vez que a pele negra se associa, em primeiro lugar, à zona quente onde habita, e em segundo, a um caráter adquirido pelo indivíduo. Entre os árabes a argumentação era semelhante.
A temática do quarto capítulo é sobre a escravidão africana na Europa no período imediatamente anterior à eclosão dessa relação no Novo Mundo. No caso de Portugal e da Espanha, a posse de escravos foi identificada em camadas intermediárias da sociedade como pessoas vinculadas ao artesanato urbano. Os autores também mencionam os negros de aluguel, que trabalhavam no embarque e desembarque de mercadorias ou tinham alguma profissão como pedreiros e caiadores e os cujos proprietários eram ligados ao setor de abastecimento. Podendo haver também negros de ganho, esses com alguma autonomia, trabalhando nos setores agrícolas e nos trabalhos domésticos com predominância feminina.
Os autores também frisam a contradição entre colônia-escravista e metrópole-livre. Países como França e Inglaterra que não toleravam a escravidão em seu território tinham colônias escravistas. Algumas medidas nesses locais vão atenuar a rigidez das leis a ponto de que possam tolerar a presença de escravos africanos. Nesse sentido, Estados como França, Inglaterra e Holanda se tornaram escravistas, uma vez que seus próprios reis se tornaram senhores de escravos, esses de posição um tanto ambígua podendo gozar de alguns privilégios.
Também eram comuns as resistências ao processo de escravização, como as fugas, individuais e em grupos, e a adoção ou manutenção de identidades religiosas. No caso das fugas, temos que lembrar que, no caso da Europa, o lugar de origem dos negros não estava tão longe quanto na América. No caso de insucesso do cativo, haviam punições que na maioria dos casos visavam não danificar a propriedade, mas eram duras envolvendo chicotes ou marcação a ferro à brasa para prevenir novas fugas. Os escravos podiam conseguir sua liberdade por dois meios: um era o resgate que consistia na compra do cativo por indivíduos da mesma fé; outra forma era a alforria que, por sua vez, consistia em três modalidades: paga, gratuita ou condicional.
Além de preceder a escravidão no Novo Mundo, a escravidão negra européia produziu uma série de regulamentos que passaram a ser usados na América e na África Atlântica.
No quinto capítulo, os autores vão tratar da história de povos que se estabeleceram nas margens dos rios Senegal e Gâmbia, serere e jalofo, vindos do vale do rio Senegal, fugindo da desertificação da savana e do Islã. A organização social destes povos era dividida em famílias reais, linhagens aristocráticas e nobreza, homens livres, castas profissionais e por último escravos. Os reis jalofos eram fornecedores de escravos ao Magrebe recebendo como pagamento cavalos e outras mercadorias, mas a partir de 1450 passaram a negociar com os portugueses que traziam os cavalos nas caravelas. O comércio entre os povos do Velho Continente e os povos da Senegâmbia era intermediado pelos lançados, europeus que se imiscuíam nessas sociedades africanas aprendendo seus usos e costumes. Nos séculos XVI e XVII, quando o Reino Gabu estava no seu auge, holandeses, ingleses e franceses instalaram diversas feitorias nessa região. Ao sul da Mauritânia a sociedade berbere teve seu comércio drenado pelos franceses. Esses se aproveitaram de uma situação de rivalidade entre guerreiros berberes e árabes para apoiar a facção entre o tráfico internacional de escravos. Mas já no fim do século XVIII a Europa já iniciou a supressão do tráfico de escravos e a Senegâmbia se tornou sua fornecedora de matérias primas aos países europeus.
O sexto capítulo é referente às regiões hoje conhecidas como Costa do Marfim e Benim entre os anos 1500 e 1800. Nesse período, como pontuam os autores, é possível estabelecer três características à região:
(...) intensa troca comercial com povos do Sudão Ocidental, do Saara, do Magrebe, e depois, da América. (...) uma centralização lenta e inexorável dos Estados; (...) o fim das grandes migrações e, com elas, a formação de diversos grupos étnolinguísticos (PRIORE, VENANCIO, 2004: 112).
O plantio de cana nas Antilhas e a descoberta de ouro no Brasil causou uma grande mudança no comércio local, uma vez que aumentou a demanda por cativos. Nesse período, os impérios que floresceram na região foram Denkira, Axante e Acuamo. As guerras entre esses geravam uma grande quantidade de cativos que não era absorvida localmente, daí como solução a exportação. Os povos desses impérios perceberam que essa exportação de seres humanos era extremamente lucrativa. Assim, esse lucro passou a justificar a organização de exércitos para a captura de escravos que seriam trocados por produtos europeus. Entre esses produtos estariam armas de fogo e artefatos em geral.
Nesse contexto, a presença européia e as atividades comerciais fizeram florescer três novos grupos: os assalariados, uma elite de comerciantes e um seguimento que atuava na política e por vezes no comércio. Os autores também vão fazer uma explanação sobre o surgimento e o desenvolvimento dos reinos do Daomé, Alada, Ajuda e Popó seguida de uma breve exposição sobre os povos iorubás, a formação de suas cidades, sua cultura e sua estrutura religiosa, bastante conhecidos entre nós brasileiros.
No sétimo capítulo o assunto são os reinos do Congo & Angola, situados ao sul do Golfo da Guiné. A respeito do Congo, que se formou por volta do ano 1400, os autores vão fazer uma pequena descrição geográfica, dos principais víveres produzidos na região e de seu povoamento. Da mesma maneira que a metalurgia, o artesanato era extremamente desenvolvido. Nesse povo, também haviam três grupos sociais bem definidos: nobreza, camponeses e escravos. No que diz respeito à religião, três cultos eram fundamentais: o dos ancestrais, o dos espíritos territoriais e o dos feitiços. Em todos esses a noção de inquice era fundamental, entenda-se tudo em que resida algo secreto e incompreensível. O monarca era considerado sagrado e chamado de criador supremo. As relações com os congoleses vão ser estabelecidas pelos portugueses já em 1482 quando Diogo Cão descobriu a embocadura do rio Zaire. Para os portugueses aliar-se a um reino poderoso significava na época abrir caminho ao reino do Preste João, além de também pretenderem uma rota continental para suas possessões na costa Oriental do contente africano. Já a partir do século XVI a região do Congo e de Angola vão ser varridos por um temido grupo de guerreiros chamados jagas.
O oitavo e último capítulo trata da questão do fim do tráfico de escravos. Essa prática foi primordial para companhias de comércio e responsável pela construção da fortuna de vários mercadores coloniais. Como pontuam os autores, para a compreensão da história da África Atlântica é necessário entender a dinâmica desse tráfico que viabilizou a constituição de vários sistemas de agricultura comercial no Novo Mundo. Primeiramente Portugal e Espanha, seguidos de Inglaterra França e Holanda vão constituir colônias na América. Para esses não era interessante apenas a produção de mercadorias, na América, que poderiam proporcionar um grande lucro na Europa, mas o tráfico em si foi uma prática extremamente lucrativa, o que fazia que esses países também travassem alguns conflitos pelo domínio e influência em regiões da África Atlântica. O comércio internacional de escravos cresceu até fins do século XVIII, momento em que surgiram vozes discordantes, como o movimento abolicionista inglês e francês. O fim da escravidão na América, contudo não era o fim da escravidão na África, onde houve uma expansão das antigas rotas escravistas via Saara com finalidade de abastecer o mundo árabe. Os autores citam regiões em que prevalecia a escravidão até a década de 1970, período que no mundo ocidental foi marcado pela luta pela liberdade individual.
Nos dias atuais, nosso país procura valorizar a história de uma parcela da população que sempre foi marginalizada desde a vinda forçosa de seus antepassados, africanos escravizados. Com certeza o livro aqui resenhado, juntamente com outras obras que procuram introduzir a história dos povos africanos que contribuíram na formação do Brasil, é uma contribuição literária significativa nesse sentido. Finalizamos com uma assertiva proposta pelos autores desde a introdução da obra.
Muito sabemos sobre a presença dos europeus entre nós. Hoje, conhecemos um pouco mais sobre os indígenas. Contudo, fora da monótona rotina do trabalho escravo, pouco ou nada sabemos do que fizeram os africanos enquanto ‘colonizadores’, com tradições culturais rivais às dos europeus. Nos manuais escolares e mesmo nas universidades, quase nada se aprende sobre nossos avós em sua terra de origem, a África – particularmente daqueles provenientes de territórios africanos dos quais o Oceano Atlântico serviu de elo com o Novo Mundo (PRIORE, VENANCIO, 2004