Constantino e o cristianismo

A parceria entre o cristianismo e o poder de Roma, por intermédio de Constantino, que ultrapassou e muito o status de religião lícita outrora concedido ao judaísmo, é uma história muito mal contada. “Diga-me com quem andas que te direi quem és” é um dito popular muito conhecido que não provoca discussões, o que indica uma boa aceitação geral. Sendo assim, considerando a má reputação de Constantino, como puderam os homens santos da igreja aceitar os préstimos daquela associação suspeita, com quem estava nem aí para o que eles pregavam?

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Caramba, diante das virtudes éticas e morais que o cristianismo toma para si, ao ponto da tradição dizer que os cristãos preferiram a morte a negar sua opção religiosa, isto é no mínimo estranho e merece uma acurada análise.

A idéia de que Constantino foi um espertalhão que se converteu para se aproveitar de uma santa religião nascente já entranhada no Império, para melhor governar as massas, parece pouco caso com os cristãos da época (que não passavam de 15%) ou com a inteligência alheia. O renomado historiador suíço Jacob Burckhardt (1818-1897), combatia a idéia de um Constantino santificado, construída na Idade Média, e o retratou como um homem que usou o cristianismo para a satisfação pessoal da possibilidade de um poder supremo. Seriam aqueles cristãos tão ingênuos ao ponto de se deixarem envolver como crianças?

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Ora, desde o princípio, os ativistas da propagação cristã eram filósofos, advogados, historiadores, escritores e educadores que nunca pescaram na Galiléia. Gente cuja ocupação não caracteriza indivíduos desinformados das classes baixas, que pudessem ser enganados por um governante ardiloso, por mais esperto que ele fosse. Essa não! Os historiadores cristãos ficam cheios de dedos ao falarem do imperador que impulsionou essa cultura religiosa sem nunca ter-se convertido, por medo de comprometerem o próprio cristianismo, evidentemente, como no parágrafo abaixo.

“Que Constantino, sendo pagão, mas de um paganismo esclarecido e tolerante como o do pai, se tenha convertido ao cristianismo não pode ser posto em dúvida. Que tenha esperado até as vésperas de sua morte, para pedir e receber o batismo corresponde ao uso frequente de então e se explica pelas duras necessidades do ofício de imperador: para não falarmos dos crimes notórios, Constantino teve que assumir sucessivamente a responsabilidade pela morte de seu sogro, de três cunhados, de seu filho mais velho e de sua mulher. Isso, no entanto, deixa em aberto o problema: a partir de que data se registra sua adesão à fé cristã? Evolução progressiva? Conversão repentina? Quando, ou a partir de quando?” (DANIELOU; MARROU, p.247).

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Não é aceitável que a história da Igreja também não tenha documentado algo de tamanha importância no progresso do cristianismo, enquanto invenções, como sempre absurdas, ganharam notoriedade e são tidas como acontecimentos históricos, que a própria história da Igreja desmente e ainda por cima servem como referência a “estudos’ acadêmicos.

“Teríamos de aceitar que a partir da batalha de decisiva da ponte Mílvia, batalha em que iria perecer Maxêncio (12 de outubro de 312) o exército de Constantino tenha arvorado em seus escudos um símbolo cristão? A anedota, que iria progressivamente enriquecer-se para um desenvolvimento literário, propalava-se nos meios cristãos achegados a corte desde os anos de 318-320, ou seja, seis a oito anos após o acontecimento. [...]” (DANIELOU; MARROU, p.247).

A anedota tornou-se conhecida nos detalhes, enquanto a conversão de Constantino não, porque não aconteceu. No entanto, alguns historiadores levaram a anedota a sério. O mais interessante é que propunham uma releitura dos estudos sobre Constantino considerados por eles insatisfatórios.

Norman Hepburn Baynes (1877-1961), historiador britânico e um dos destacados participante desse “consenso”, baseado em editos, cartas e discursos do próprio imperador, entendeu que Constantino se converteu em 312, devido à religiosidade supersticiosa da época.

Com o sucesso da sua campanha contra Maxêncio, Constantino teria passado a se devotar ao deus cristão. Baynes, como outros que o antecederam, concluiu que, após 312, Constantino desenvolveu uma política religiosa a partir de um sentido de missão pessoal, na qual o objetivo seria o triunfo do cristianismo em união com o Estado Romano.

Todavia, pelas informações que nos chegaram, Constantino e o cristianismo eram mesmo linhas paralelas. Fatos documentados, inclusive moedas cunhadas depois de 312, mostram que o imperador continuou a reverenciar o deus pagão Sol Invictus. Uma inscrição encontrada no Egito, em 327, diz que Constantino ainda subsidiava esse culto pagão e as viagens dos seus sacerdotes.

Essa conversa de Constantino herói ou bandido serve somente para dividir as atenções. Senão vejamos: o máximo de 15% de cristãos, na época em que ele convidou o cristianismo a participar do poder, demandava investimentos e um risco político que somente a fé, que Constantino não tinha, não justificava. Apesar de não ter bola de cristal, Constantino, estava convencido de que tudo daria certo, por algum motivo não religioso, evidentemente. Que motivo seria esse?

Constantino era filho de mãe de fala grega e pai de falo grego. Constâncio Cloro era um dos muitos militares gregos a serviço do Império Romano. Constantino foi criado na Ásia Menor, solo grego, e, segundo Gibbon, desprezava Roma. O desprezo dos gregos (indo-europeus) pelos bárbaros latinos é algo notório, ainda que alguns cristãos fossem latinos. Tanto que a rixa entre ambas as igrejas permanece até hoje. Mas esse é outro assunto.

Somente a origem grega do cristianismo e conversações avançadas no mundo helênico poderia assegurar a Constantino a confiança demonstrada. A cultura helênica havia se implantado decisivamente em todo mundo antigo, muito antes do domínio romano, do qual Roma toda faceira já fazia parte. Somente o talento e a experiência acumulada pelos gregos poderiam conceber e precipitar uma religião sincrética cuja maleabilidade abarcasse o todo, e, inclusive, mantivesse os indomados judeus sob seu controle, ao inocular o judaísmo num contexto cultural mundial. Deve ter sido uma oferta tentadora.

É interessante observar que a convicção pagã de Constantino seguia tranquila, a despeito da sua amizade com o cristão Lúcio Cecílio Firmiano Lactâncio (260-320), que veio tornar-se conselheiro do imperador, e que, desde Diocleciano (284-305), contestava o politeísmo greco-romano com o objetivo minar os fundamentos místicos que legitimavam o sistema político da Tetrarquia ou do poder dividido por quatro: Diocleciano (Augusto), Maxminiano (Augusto), Galério (César) e Constâncio Cloro (César).

Percebe-se a evidência de que gestões calculadoras eram feitas pelos cristãos na corte, bem antes de Constantino chegar ao poder. Ninguém que estuda o assunto ignora que o cristianismo almejava tornar-se a única religião de um governo mundial a semelhança do não alcançado ideal universal helenístico. Convenhamos que a ideia de que esta crença chegou ao poder de modo acidental, é no mínimo infantil. Portanto, a discussão que faz de Constantino herói ou bandido não procede. Parece que a sua função é afastar a atenção geral daí, dos bastidores dessa negociação ainda oculta.

Referências

DANIÉLOU, Jean; MARROU, Henri. Nova história da Igreja: dos primórdios a São Gregório Magno. Petrópolis: Vozes, 1966.

http://universo.academia.edu/DiogoSilva/Books/375236/Lactancio_contra_a_Tetrarquia_284-311_

http://universo.academia.edu/DiogoSilva/Papers/372428/As_abordagens_historiograficas_sobre_Constantino_I_306-337_uma_revisao