Estudo de convergências e divergências entre “I used to love H.E.R”, de Common, e “Love of my life”, de Sick Brain

1. Introdução

ANÚNCIO

A existência de confluências entre textos literários de diferentes naturezas não é algo recente. Os conceitos por detrás dessas confluências, esses sim, é que são de fresca data. Este facto contribui, de certa forma, para que a Literatura Comparada, área do conhecimento que se ocupa pelo estudo, através da comparação de duas ou mais obras, se encontre prenhe de divergências teóricas, nomeiadamente, em relação às orientações metodológicas a seguir para a elaboração de um trabalho de comparação. É no meio dessa dispersão de teorias que surge o presente trabalho que tem por objectivo comparar as letras das músicas I used to love H.E.R, do rapper norte americano Common, e “Love of my life”, pertencente ao rapper moçambicano Sick Brain, avaliando os pontos onde estes textos convergem e outros em que os mesmos divergem diante do assunto que os dois rappers ou, se quisermos, poetas observam: a questão do amor que nutrem pela cultura Hip Hop.

ANÚNCIO

Com vista à melhor compreenção do trabalho comparativo ora proposto, esta abordagem irá iniciar com o esboço do arcabouço teórico necessário para tal.  Assim, nesta fase, de forma sumária será apresentado o conceito de intertextualidade, sem o qual, qualquer trabalho comparativo fica votado à inconsistência. Será também nesta fase que refrescar-se-à a memória dos leitores em relação ao já familiar conceito de cultura Hip Hop. Num segundo momento, uma vez que os textos em causa são ainda desconhecidos para alguns leitores, tecer-se-á um primeiro encontro com estes, através de uma exposição resumida dos mesmos.

2. Um pouco de teoria

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2. 1. Comparação e Intertextualidade

Segundo a proeminente comparatista Tânia Franco Carvalhal, “comparar é um procedimento que faz parte da estrutura de pensamento do homem e da organização da cultura. Por isso, valer-se da comparação é hábito generalizado em diferentes áreas do saber humano e mesmo na linguagem corrente, onde o exemplo dos provérbios ilustra a frequência de emprego do recurso”. [1]

Ainda segundo a mesma autora, citando T. S. Eliot, “nenhum poeta, nenhum artista de qualquer arte, tem valor isolado. Seu significado, sua apreciação é feita em relação a seus antecessores. Não é possível valorizá-lo sozinho, mas é preciso situá-lo, por contraste ou comparação, entre os mortos.” [1] [2]

Importa relembrar que, conforme foi referido anteriormente, em literatura não se pode falar de comparação deixando de lado o conceito de intertextualidade, pois sem este, qualquer trabalho comparativo fica votado à inconsistência. Daí a necessidade de introduzí-lo imediatamente.

O conceito de intertextualidade abrange as várias formas pelas quais a produção e a recepção de um texto pressupõe o conhecimento de outros textos, isto é, “diz respeito aos factores que tornam a utilização de um texto dependente de um ou mais textos previamente existentes.” [3]

Portanto, pode-se dizer que há intertextualidade quando um texto remete a outro para defender as idéias nele contidas ou para contestar tais idéias. Assim, para se definir diante de um determinado assunto, o autor leva em consideração as ideias de outros autores e com eles dialoga no seu texto. [4]

Uma vez que o texto não se restringe apenas à escrita, podendo assim assumir um sentido mais amplo, isto é oral ou visual, a intertextualidade pode também ser encontrada noutras áreas tais como: a música, o cinema, as artes plásticas, a propaganda, etc.

No que concerne à literatura, um exemplo típico de intertextualidade pode ser encontrado entre os poemas “Canção do exílio” de Gonçalves Dias e “Nova canção do exílio” de Carlos Drummond de Andrade, ambos referenciados na emblemática obra de Carvalhal e amplamente divulgados nos manuais de Língua Portuguesa do Sistema Nacional de Ensino em Moçambique e, com certeza, de outros países de expressão lusófona.

Na esfera da música, em particular no que toca ao Hip Hop, muitos exemplos podem ser encontrados, sendo que ao público moçambicano, é mais evidente e familiar o caso de “Ser Negro” do português Gutto e “Ser Negro” da moçambicana Dama do Bling, visto que esta última é, praticamente, emitação da primeira, facto que não deve constituir motivo para alarme pois, segundo Carvalhal “a imitação é um procedimento de criação literária. Sabiam-no os clássicos, que estimulavam a imitação como prática necessária, tanto que a converteram em norma”. [1]

2.2. Cultura Hip Hop

De acordo com Souza citando Contador, o termo hip hop, foi criado em meados de 1968 por Afrika Bambaataa, reconhecido como fundador oficial do hip hop. Ele teria se inspirado em dois movimentos cíclicos, ou seja, um deles estava na forma pela qual se transmitia a cultura dos guetos americanos, a outra estava justamente na forma de dançar popular na época, que era saltar (hop) movimentando os quadris (hip). [5]

Segundo a mesma autora, desta feita citando Big Richard, são quatro elementos do hip hop: MC (compositor do rap), DJ (artista e técnico que mistura músicas diferentes para serem ouvidas e/ou dançadas, usando suportes como vinil, CD ou arquivos digitais sonoros para ‘tocar’), Break Boy /ou Break Girl (B.Boy - dançarinos) e Grafiteiro. Entre eles, as diferenças são grandes, porém todos têm um objetivo comum: a transmissão de uma mensagem consciente, relacionada com a realidade vivida em seu meio de origem. [5]

3. “I used to love H.E.R” vs “Love of my life”

3.1. I used to love H.E.R

Este tema de Common, que é cantado em inglês e é tido como uma das jóias mais reluzentes da música Hip Hop, está integrado no álbum “Resurrection” (Relativity Records, 1994) e foi produzido por No I.D., usando sample, ou seja, excerto da música  “The Changing World” de George Benson. Mais tarde, esta música veio a sofrer várias remisturas, sendo de destacar a feita pelo exímio produtor 9th Wonder, que posteriormente veio a lançá-la em formato single.

Na letra desta música, Common fala metaforicamente do Hip Hop comparando-o a uma mulher, sem no entanto revelar a priori essa sua pretensão.  A letra encontra-se dividida em três partes retratando cada uma um contexto histórico distinto. Na primeira, Common, aos 10 anos de idade, conhece essa mulher madura e encantadora e apaixona-se por ela, sem esperar que um dia ela se interresse por ele. Com o tempo, a amizade e a cumplicidade entre eles nasce e vai crescendo. Nesta altura, conta Common, ela era ‘underground’, original, pura e sem aditivos. Na segunda parte, a mulher vai crescendo, e se tornando afrocêntrica. Nesta fase da sua vida  ela o ensina muita coisa sobre lutar contra a violência e sobre a história do seu povo. Posteriormente, ainda nesta parte, ela parte para West Coast (Costa Oeste dos EUA), mais precisamente para Los Angels (L.A.) e daí começa a considerar o movimento ‘Pro-Back’ fora de moda e a Afrocentricidade coisa do passado, entra na onda do R&B, do hip house e do bass and jazz. Na terceira parte, a saga continua, uma vez em L.A., um homem a recomenda que se usasse a imagem ela ganharia muito dinheiro, e ela fá-lo sem questionar. E a partir deste momento, ela muda radicalmente de vida, torna-se popular, começa a andar com gangsters e vadias, consome álcool e drogas, enfim, prostitui-se. Mas Common, mesmo vendo que ela desenvolveu um comportamento de risco, compromete-se a levá-la de volta ás origens, esperando que toda essa confusão acabe. E aqui, no último verso, o rapper acaba com o mistério e revela que a tal mulher a que se refere é o Hip Hop.

3.2. Love of my life

“Love of my life” é um single gravado pelo rapper Sick Brain há aproximadamente três anos. Cantado em português, a sua versão original foi produzida por 7 Kruzes e posteriormente remisturada pelos produtores Street Knowledge e Domination. Embora, ainda não tenha sido incluído em álbum, tanto o tema original como as remisturas foram postas a circular informalmente de mão em mão e foram também divulgadas pelas rádios e pela Internet.

À semelhança de Common, neste seu tema, Sick Brain fala metaforicamente do Hip Hop comparando-o a uma mulher, mas sem esconder essa sua pretensão. Neste tema, Sick Brain relata, em duas partes, o triângulo amoroso existente entre ele (o MC verdadeiro), o Hip Hop (a mulher) e outros (falsos MCs).  Na primeira parte, Sick revela o amor verdadeiro que ele sente pelo Hip Hop e denuncia a falsidade do amor que os outros têm pelo Hip Hop. Na segunda, fala das críticas que os outros o fazem pelo tempo que dedica ao Hip Hop. Nesta parte o rapper reitera a pureza do seu amor, e o facto dele se manter firme e leal ao Hip Hop, e em nenhum momento colocar a possibilidade de traí-lo por dinheiro, fama, glória ou por outros estilos mais comerciais, para os quais os outros falsos MCs fugiram, como o Pandza/Dzukuta.

4. Análise das convergências e divergências nos textos em causa

Segundo Kahmann, ‘a leitura de uma obra está impregnada das influências do contexto - histórico, econômico, social, e também literário.’ [6]

Partindo desse pressuposto, fácil é concluir que, duas obras, de nações distintas, embora apresentem similaridades por retratarem um mesmo assunto serão impregnadas de divergências por estas pertencerem a contextos históricos, económicos e socias diferentes. Os textos em causa não fogem a esta regra, ou seja, os autores observam um mesmo assunto, usando lentes analíticas distintas. Common retrata o contexto norte-americano e Sick Brain o contexto moçambicano.

Um ponto que, numa primeira observação, distingue “I used to love H.E.R” de “Love of my life” é o facto de Common manter suspense em relação à verdadeira identidade da mulher a que se refere, ao contrário de Sick Brain que revela logo a priori essa identidade. Outro ponto que afasta os dois textos reside na utilização da terceira pessoa gramatical (she/ela) para se referir à pessoa amada, por parte de Common, ao passo que Sick Brain prefere a segunda pessoa (tu):

“I met this girl, when I was ten years old

And what I loved most, she had so much soul
She was old school, when I was just a shorty
Never knew throughout my life she would be there for me”

Common

“Muitos nem sabem quem és

Não sabem quanto linda tu és

Só ‘tão contigo por cash

Não sabem que és mãe de quatro rebentos

Não sabem que deste origem a quatro elementos:

O MC, o B-Boy, o Dj e o Grafiteiro”

Sick Brain

Embora pareçam irrelevantes, esses dois pontos permitem-nos tirar algumas ilações em relação à forma como cada um dos rappers usa a sua música como meio de comunicação. O primeiro ponto permite-nos verificar que a mensagem emitida por Common é ambígua e portanto mais difícil de decifrar por parte do seu receptor. Ao passo que em relação ao Sick Brain essa dificuldade é menos acentuada. Em relação ao segundo ponto, em “I used to love H.E.R.” Common mostra-nos que a sua ‘estória’ é revelada a uma teceira pessoa, um confidente que neste caso será a pessoa que ouve  a música, em oposição ao Sick Brain que em “Love of my life” dirige-se directamente à pessoa para quem a música é dirigida.

Não se pode, também, perder de vista o contraste denunciado pelos títulos das músicas. Common, ao dizer “I used to love H.E.R.” ou seja ‘Eu costumava amá-la’ deixa transparecer que a sua relação de amor nem sempre andou bem, isto é, ele costumava amá-la, mas em algum momento ela o deixou decepcionado. Por seu turno, Sick Brain ao usar o título “Love of my life” ou seja ‘Amor da minha vida’ deixa cair por terra a possibilidade de ter havido um rompimento na sua relação, isto é, trata-se de um amor que dura, continuamente, a vida inteira.

Outro contraste a ter em conta é em relação ao contexto histórico em que cada tema foi concebido. Common retrata na sua música a queda do Rap consciente face à subida, no início dos anos 90, do West Coast Hip Hop que, como se sabe, é considerado o maior responsável pela deterioração da música Hip Hop nos E.U.A. ao passo que Sick Brain, retrata na sua música, também, a queda do Rap consciente mas desta feita, devido à ascenção do Pandza/Dzukuta, sub género do Hip Hop moçambicano surgido nos meados de 2005, que por ter uma aceitação comercial razoável acabou sendo adoptado por muitos MCs em detrimento do Hip Hop considerado verdadeiro. Vê-se portanto, a preocupação dos dois rappers em mostrar como novos estilos, comercialmente viáveis, põem em causa a integridade do tão amado Hip Hop verdadeiro:

“She said, Afrocentricity was of the past
So she got into R&B, hip house, bass and jazz
[…]

Now I see her in commercials, she's universal
[…]

Always smoking blunts and getting drunk
Telling me sad stories, now she only f**ks with the funk”

Common

“Pus o anel

Não vou mudar de conduta

Sou fiel e não te troco

Nem por Pandza/Dzukuta”

Sick Brain

Aliás, o facto da introdução de elementos que tornam o Hip Hop mais viável comercialmente já é um ponto de convergência entre os textos em análise, para além do uso da linguagem informal e, claro, do ponto principal que é facto dos dois autores fazerem uma analogia comparando o Hip Hop a uma mulher amada.

5. Considerações finais

Importa ressaltar, antes de dar cabo a esta abordagem, que a leitura por nós feita poderá parecer incompleta visto que passa à margem de alguns aspectos não menos importantes na análise de textos desta natureza, como é o caso dos recursos estilísticos, tal sucedeu pois, mesmo que fosse nossa vontade, não seria possível e nem era nosso propósito esgotar todos aspectos relativos ao confronto entre os textos em causa. Todavia, foi-nos possível mostrar evidências de alguns pontos em que os textos se aproximam e outros em que os mesmos se distanciam. Verificamos que as similaridades repousam no assunto abordado, na maneira como o mesmo é aboradado e na linguagem usada e que os contrastes estão condicionados ao contextos histórico, económico e social em que cada texto foi escrito.  Explorando criticamente os dois textos, pudemos também verificar que Common, que veio primeiro ao lume, lança sua luz sobre Sick Brain e daí se cria um diálogo entre os dois textos. Enquanto Common discursa sobre as aflições do Hip Hop norte-americano, Sick Brain corresponde com os tormentos do Hip Hop moçambicano, ou seja, em “Love of my life” Sick Brain ‘re-inventa’ o texto de Common, dando-lhe um significado que “I used to love H.E.R” não consiguiria ter no contexto moçambicano. Dessa forma, Sick Brain redescobre a mensagem de Common e a expõe aos seus receptores sem, no entanto, recorrer à uma reprodução cabal do seu conteúdo.

6. Referências bibliográficas

1. Carvalhal, T. F. Literatura comparada - 4.ed. rev. e ampliada. São Paulo : Ática, 2006.

2. Selected Prose of T. S. Eliot. London, Faber & Faber, [1917]1975.

3. Larson, E. Intertextualidade musical na obra de Caetano Veloso. Anais do V Congresso Latinoamericano da Associação Internacional para o Estudo da Música Popular. s/d. Disponível em: http://www.hist.puc.cl/historia/iaspmla.html.  (Acesso em: 05/12/2010).

4. Maia, M. C. M. Interextualidade. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ, s/d. Disponível em: http://www.acd.ufrj.br/.../intertextualidade2.html (Acesso em: 02/01/2011).

5. Souza, R. M. V. Cultura Hip Hop. Identidade e Sociabilidade: Estudo de Caso do Movimento em Palmas. Bocc, s/d. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt (Acesso em 30/10/2010).

6. Kahmann, A. C. Intertextualidade e interdisciplinaridade na obra ‘De todo lo visible y lo invisible’, de Lucía Etxebarría. 2004 Espéculo. Revista de estudios literarios. Universidad Complutense de Madrid. Disponível em: http://www.ucm.es/info/especulo/numero28/inteetxe.html (Acesso em: 05/12/2010).