Até os oito anos acho que eu era um pouco covarde. Mil novecentos e noventa e quatro, eu acho. As pessoas aqui dizem que eu sempre fui muito precoce, sabe como é. Tenho certeza que acham isso porque já me viram falar sozinho algumas vezes. Poucas, mas precisas vezes. Eu sempre gostei de ficar horas a fio, solitário, tentando decifrar códigos e metáforas em letras de música: “Vamos usar um extintor como lençol”; ou seja, quer dizer que as pessoas podem usar um cobertor na falta de instrumento para apagar o fogo. Ou então elas devem fazer amor sem um cobertor, porque ele acaba por apagar o fogo. Na verdade aprendi a gostar de onde estou, (um quarto só meu com televisão colorida) porque quando eu cheguei por aqui resolveram me deixar na pior sala do lugar, uma jaula quente e mofada, infestada de ácaros nas camas, as paredes chapiscadas e faltando reboco, cheia de pernilongos chatos bem no meio do mato insolente do cerrado, quase à beira de uma morte tediosa e insólita.
O que me preocupa mais, é saber os reais motivos da minha vinda para a clínica. Não todo mundo, mas a mim mesmo. Engraçado é que tudo parece que aconteceu numa vida inteira. Quando eu completei oito anos, bem no dia do meu aniversário, bem na hora que eu assoprava oito velas azuis enterradas em cima de um bolo branco e enorme cheio de cerejas médias (eu sempre odiei cerejas, mas mentia para minha mãe) eu quis ficar invisível pela primeira vez. Eu não me lembro de ter passado despercebido antes, porque eu era muito pequeno. O lance é que, naquele dia eu estaria invisível e aquilo de fato marcaria minha vida para sempre. Todos estavam ao redor da minha mesa e eu, sendo o protagonista do dia, estava feliz porque era o meu dia. Já passavam das sete da noite e todo mundo batia palmas e assobiava e gritavam meu nome, eu tinha um bolo, amigos e minha mãe. Quando todos terminaram de cantar parabéns eu apaguei minhas velas e minha mãe acendeu a luz, foi quando eu vi lá no fundo, atrás da multidão esfomeada, amassados entre minhas tias de Minas Gerais, a Brenda e o Luizinho se devorando feito dois atores de Novela. Desde o início eu tinha abolido a ideia estúpida e imunda de chamá-lo para a festa, mas minha mãe o chamou assim mesmo porque o pai dele mandava na minha mãe lá no escritório de advocacia da 3ª Avenida. Luizinho sabia que eu amava Brenda porque eu já havia confessado a ele há dois meses num dia de sol depois do jogo da final do campeonato que perdemos. Ele disse que eu estava fodido, que não ganhava futebol nem mulheres e eu chorei, e ele me disse que homens não choram. Quando eu os vi juntos, no meio das minhas tias, quis ficar invisível de verdade ou então sair correndo dali feito um centroavante profissional. Como eu acho que ninguém na festa poderia me ver, devido ao estado de invisibilidade, dei a correr porta à fora, depois pelas ruas e esquinas e sumi de vez. Não olhei para trás, caso a invisibilidade não tenha funcionado direito. Horas depois voltei. Não havia ninguém em casa. Morávamos eu, minha mãe, Francisca e o Dado meu irmão mais velho que se preparava para as primeiras provas do concurso da Academia Militar das Agulhas Negras, pois o sonho dele era se formar Oficial do Exército. Era engraçado vê-lo dizer que ia meter fogo nos americanos e nos caras das FARC lá na Amazônia. Quando o Dado passou de verdade e foi pra Academia, minha mãe quis chorar de emoção (e de fato chorou, depois da ida dele) enquanto eu, com um estranho ciúme, quis ficar invisível mas não consegui. Já com a Brenda não era exatamente um “ciúme” nem inveja do Luiz, mas uma tristeza. Existem as tristezas boas – inventadas pelos caras da Bossa Nova – e as tristezas ruins, que vem da gente mesmo. Um dia ouvi dizer que “tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento”, deve ser isso mesmo. Mas o certo é que minha mãe é advogada e lembro que sempre que ficava triste ela tomava umas drágeas de remedinho um esquisito que ficava em cima da pia da cozinha. Então, fui até o armário da dispensa onde ficava nossa farmacinha e catei dois comprimidos. Engoli seco, sem nada – água é para os fracos – e só depois li a caixa: Prozac. Achei o nome engraçado e dei uma gargalhada. Pensei em ler a bula, mas vi que tinhas nomes enormes e esquisitos completamente diferentes do nome comercial. Fui assistir TV. Três minutos depois me bateu uma sede dos diabos; fui até a cozinha e tomei a vodca que meu irmão tinha deixado na porta da geladeira. Três minutos depois, reparei que estava invisível.
Anos depois, dei a experimentar outras coisas. Eu não gostava de maconha porque meu coração batia mais devagar, me davam também flash back’s e por fim eu não gosto de ficar lerdo. Comecei a cheirar, mas logo parei porque eu estava ficando hiperativo demais, meu nariz coçava, saia catarro e coriza ao mesmo tempo e ainda por cima sempre que eu tecava demais meu nariz adormecia e eu saia pedindo para meus amigos darem umas porradas na minha cara daí as meninas me olhavam torto e a noite acabava sendo uma merda. Então eu fiquei quadrado e limpo.
Certa tarde, enquanto a depressão e a inércia de um domingo nublado me consumia no sofá em frente à TV, lembrei do meu aniversário, e consigo as drágeas que minha mãe ainda guardava no armário, caso começasse a ficar pra baixo por um motivo ou outro, fútil ou não. A farmacinha estava no quarto dela, dentro do armário do banheiro do quarto dela. Não era exatamente uma farmácia, só uns remédios toscos em cima das prateleiras, e junto, os comprimidos mágicos. Enfiei três na boca e fui equilibrando eles na língua até a geladeira. Peguei dois cubos de gelo e meio copo de vodca russa. Pensei em ficar esperando o efeito surtir lendo a bula novamente – Princípio ativo: Cloridrato de... deixei pra lá. Saí à rua e caminhei duas quadras até perto da casa da Brenda. Ela estava sentada embaixo de uma árvore, junto a umas amigas que não pude identificar então eu me agachei num meio-fio próximo. Ela ria pateticamente junto com as outras meninas que antes de as darem risadas toscas, falavam baixo, como se falassem de alguém que conheciam entre si. Fiquei observando Brenda, ela tinha crescido, só que tinha mais peito do que bunda e já estava com treze anos, era poucos meses mais nova do que eu. Cheguei mais perto e ela não me viu, pensei que era porque não falava mais comigo, mas depois lembrei que eu estava invisível. Ela então se despediu das amigas e foi embora (pensei por instantes em ir embora também, o cansaço batia e eu estava louco para jantar). Decidi segui-la. Caminhei atrás dela e vi quando abriu o portão de casa e deixou encostado. Fui até lá e o fechei. Depois, andei alguns metros e resolvi voltar. Abri devagar o portão e entrei pelo corredor porque os pais dela estavam na sala assistindo filme e eu fiquei com medo do efeito dos comprimidos passarem e eles me verem. O corredor estava molhado e escorregadio. Havia caído uma chuva fina e o cachorro da Brenda veio me cheirar. Era um pastor alemão chamado Yago, de origem alemã, eu acho. O Yago me acompanhou até os fundos onde ficava a cozinha. Eu entrei e reparei que ali havia tido uma troca de azulejos e de cerâmica do piso, além de alguns utensílios domésticos. Pelo menos eu não me lembro de nada disso nesta cozinha, pelo menos da última vez que eu estive aqui com a minha mãe, completamente visível.A Brenda estava no banho . Eu não sabia disso até escutar o som do chuveiro elétrico quando encostei na maçaneta (eram iguaizinhas as lá de casa). Quando eu entrei, vi que ela estava toda ensaboada, com o corpo cheio de bolinhas e o cabelo escorrendo pelos ombros e palas costas. De repente fui tomado por uma felicidade incrível e sem possibilidade alguma de descrever aqui. No instante em que eu toquei de leve, com apenas uma mão, seu corpo, num gesto de carinho e afeto, sem más intenções, ela se virou de uma vez e deu de cara com minhas calças no meio do joelho, a mão estendida e meu som de shhh!, começando uma sessão de tapas no meu peito e gritos absurdos de ódio. Ainda continuei Feliz por que enquanto eu era brutalmente espancado por ela, pude ver aqueles peitos saltitantes quase sorrindo pra mim. Brenda sempre foi muito contraditória.
Quando me com os pais dela no banheiro – a mãe cobrindo a filha com uma toalha e me xingando, o pai dela esmurrando meu nariz com os punhos e o Yago me comendo a cara – tive certeza que o maldito efeito dos comprimidos da minha mãe haviam passado. Depois, a mãe dela acionou a minha pelo celular enquanto eu era içado na camisa pelo pai dela que não parava de me chamar de moleque pervertido. Quando minha mãe chegou, depois de tudo explicado, eu tentei dizer a ela que a Brenda nunca tinha me visto porque eu estava invisível. Foi quando eles me olharam como se eu fosse doido ou drogado ou tarado. A Brenda disse a todos que eu era doente, e quando eu perguntei a ela se tinha medo de mim, ela me cuspiu no olho e disse que tinha nojo da minha cara. Pensei em ficar puto assim como minha mãe estava, mas eu só fiquei deprimido. E ali, agora, naquela sala, a única coisa que eu queria realmente era ficar invisível.
Quando chegamos em casa, minha mãe foi assistir TV e eu fui pro meu quarto dormir um pouco. Ao acordar no dia seguinte ainda pela manhã notei que ela não estava presente. Me dirigi até a geladeira e abri uma garrafa de vodca e catei algumas drágeas de remédio. Quando voltei à rua, vi o Luiz do outro lado da rua, perto de uma loja de ferragens com uma das amigas do colégio, Elisa. Aquele boçal estava com a sua bocarra fedorenta enterrada nos peitos murchos dela que se contorcia toda. Parecia estar com cólica.
Olhando aquilo perguntei a mim mesmo o que havia de errado em tudo que acontecia. O Luizinho não gostava da Brenda. A Brenda não gostava de mim. Mas eu gostava dela e queria suprir a falta de amor que o Luizinho dava a ela.
Depois de algum tempo nós nos mudamos. Minha mãe estava estudando mais do que nunca por causa das provas e eu estava dando trabalho mais que o habitual, pelo menos é o que ela dizia no telefone para as minhas tias. Na verdade minha mãe que andava em crise, todo ano. Sempre que se aproximam as provas ela fica assim. Isso eu já sei de cor. Desde a juventude ela é nervosa e frustrada porque nunca conseguiu passar pra OAB. Daí começou a tomar anti-depressivos aos quilos. Ainda bem que ela não é hipocondríaca. Nessa época eu também pensei em parar de ficar invisível porque não queria que ninguém soubesse que eu era doido e tarado. Mas no primeiro dia do colégio novo eu vi uma menina meio de longe, mas igualzinha a Brenda. Ela jogava handball e também tinha peitos e eu disse a ela que eu poderia ficar invisível mas ela duvidou dizendo que eu era debil e infantil. Foi então que eu decidi provar a ela: depois da aula fui até o banheiro, ingeri com água da torneira e na hora do intervalo eu estava pronto. Ricardo era seu namorado não oficial que ficou enchendo o saco todo o tempo, eu policiando tudo. Quando o sinal do retorno da aula tocou, enquanto os moleques davam seus últimos chutes, eu cheguei por trás do Ricardo e enfiei uma estaca de madeira de um rodo velho em suas costelas com toda minha força. Ele gemeu como uma porca, todavia conseguiu me ver ali parado à sua frente com o pau na mão. Eu sorri pra ela e fiz um sinal positivo e ele tomou o cabo da minha mão e só tive tempo de proteger a cabeça com as mãos e os braços, enquanto todo mundo do colégio fez um círculo ao nosso redor numa gritaria sem fim. Acho que há muito tempo ninguém ousou dar um espetáculo daquele no pátio.
Na direção, a vice-diretora trouxe cubos de gelo e açúcar para estancar meus ferimentos. A secretária, que chegou para recolher assinaturas, disse com um tom ameaçador que eu tinha acabado de me matricular no colégio e já estava causando problemas daquela natureza. Me deu vontade de mandar aquela professorazinha frígida ir à merda, mas a única coisa que fiz foi ficar quieto. Quando minha mãe chegou, o cara agredido por mim já não estava no colégio, e eu argumentei que não haviam provas suficientes para a suspensão das minhas aulas, mas aí a diretora mostrou à minha mãe todos os arranhões e gangrenas expostas pelos meus braços, cotovelos, joelhos, coxas, pez, nariz, boca, têmporas, e todos disseram que aquilo tudo era irrefutável, que eu ia mesmo me foder de verdade. Minha mãe, ao contrário do que eu esperava, não ficou tão brava comigo. Ao contrário, ao invés de assinar os termos cabíveis da suspensão, solicitou a secretária do colégio, minha expulsão imediata daquele colégio, onde, segundo ela, era péssimo para minha educação.
*Texto de Lucas Feat, originalmente publicado no Portal Literal - Site Terra