Rangel Alves da Costa*
Antes de tornar-se uma terra com as caracterĆsticas que atualmente possui, diz a lenda que o sertĆ£o foi, primeiramente, morada de deuses. Magros, desnutridos, marcados pela eternidade da espera por dias melhores, alegres nas suas tristezas, mas eram deuses, e deuses sertanejos.
Naquela terra inóspita, onde os elementos da natureza ainda nĆ£o estavam ordenados para determinar as estaƧƵes, os perĆodos de seca e de chuva, o contraste entre as fraquezas dos seres humanos e as explicaƧƵes para as grandes e aterradoras forƧas da natureza, viviam pessoas comuns ao lado de deuses, estes reverenciados perante o poder de cada um naquele mundo e mantendo um relacionamento amigĆ”vel com os moradores do lugar.
Os deuses sertanejos, do mesmo modo que os gregos, tambĆ©m possuĆam caracterĆsticas humanas. AlĆ©m de ter forma humana, tinham sentimentos humanos como amor, ciĆŗmes, inveja, traição, ira e violĆŖncia. Quer dizer, cada divindade tinha sua própria forma fĆsica, genealogia, interesses, personalidade e sua própria especialidade. Chegavam a se apaixonar pelas belas mocinhas campesinas e com elas ter filhos. Muitos heróis sertanejos nasceram desse cruzamento.
Contudo, para resolver um problema ou para buscar ajuda na realização de determinado ato, o homem do sertĆ£o nĆ£o procurava, indistintamente, qualquer um dos deuses, pois, como jĆ” afirmado, cada um era competente para determinado assunto. Por exemplo, se uma crianƧa nĆ£o sabia ler nem escrever, a deusa responsĆ”vel sobre o assunto nĆ£o era outro senĆ£o a Professora, correspondente a deusa grega Atena, divindade responsĆ”vel pela propagação da sabedoria. Mas para saber qual divindade poderia resolver seu problema, o sertanejo tinha que consultar o orĆ”culo, que era a pessoa mais idosa e sĆ”bia da comunidade e assim, alĆ©m de ficar ciente sobre qual deus deveria reverenciar, tambĆ©m poderia procurar saber sobre outros fatos que estavam ocorrendo e tambĆ©m sobre o futuro. Para o sertanejo de entĆ£o e dos dias atuais, o futuro sempre foi instigador, provocador de insinuaƧƵes, vez que havia e ainda hĆ” o constante temor de um amanhĆ£ sombrio e cada vez mais difĆcil.
AtravĆ©s do orĆ”culo, com informaƧƵes colhidas num alguidar com Ć”gua de chuva, foi previsto, dentre outras coisas, as secas que mais tarde assolariam o sertĆ£o, como a de 1877 (tĆ£o aterradora que D. Pedro II foi ao Nordeste e prometeu vender “atĆ© a Ćŗltima jóia da Coroa” para combater o problema; o que jamais fez); a formação de impĆ©rios coronelistas no Nordeste (a partir do sĆ©c. XVII, quando polĆticos donos de imensos latifĆŗndios impuseram suas forƧas e poderes atravĆ©s da troca de favores e da arma do jagunƧo); e o surgimento dos bandos de cangaceiros (sendo o mais importante o de LampiĆ£o, que reinou absoluto na regiĆ£o nas primeiras dĆ©cadas do sĆ©culo XX, atĆ© ser morto em PoƧo Redondo/SE, em 1938).
Assim, nos orĆ”culos sertanejos estavam o presente e o futuro, as explicaƧƵes da realidade e as profecias do que iria acontecer. Foi tambĆ©m atravĆ©s da consulta ao orĆ”culo que os humildes interioranos ficaram sabendo que mais tarde, num futuro distante, depois de muitas luas e sóis, e jĆ” no caminhar do sĆ©culo XXI, o sertĆ£o e o seu povo continuariam sendo usados para interesses politiqueiros; subjugados e submetidos pelos polĆticos do lugar, que chegariam de outras bandas para soar a trombeta da maldade e da perseguição; manipulados pelas forƧas polĆticas federais, estaduais e municipais, que se aproveitariam das conseqüências causadas pelas estiagens para esmolar o homem valente e trabalhador em troca de voto; ameaƧados e amedrontados por levas e levas de pessoas que viriam de fora para tomar terras, invadir propriedades, matar rebanhos e dizimar plantaƧƵes. Tudo isso jĆ” havia sido profetizado pelo orĆ”culo, que faltou somente antecipar que tudo aconteceria por culpa do próprio povo, que nĆ£o saberia votar, nĆ£o teria a devida coragem de dar um basta nos absurdos que ocorreriam e que ocorrerĆ£o muito mais, se assim for permitido pela omissĆ£o daquele que realmente deveria ser āantes de tudo um forteā.
O passar dos anos, contudo, nĆ£o apaga a forƧa existente na lendĆ”ria mitologia sertaneja. Se na mitologia grega existiam doze principais deuses olĆmpicos: Zeus (o deus maior, pai espiritual dos outros deuses e das pessoas), Afrodite (deusa do amor e da beleza), Hefestos (deus do fogo e das artes manuais), Poseidon (deus do mar), Atena (deusa da sabedoria e da guerra), Artemis (deusa da caƧa), Hermes (mensageiro dos deuses e protetor do comĆ©rcio das invenƧƵes), Apolo (deus da luz e das obras de arte), Hera (esposa de Zeus e divindade dos casamentos e da maternidade), DemĆ©ter (deusa da agricultura), Ares (deus da guerra) e HĆ©stia (deusa do coração e da chama sagrada), na mitologia sertaneja todos esses deuses possuĆam nomes próprios, dentro das caracterĆsticas da regiĆ£o.
Assim, Zeus era o Vaqueiro; Afrodite era Maria, a moƧa mais bonita do lugar; Hefestos era o ArtesĆ£o; Poseidon era o Ribeirinho, morador das margens do SĆ£o Francisco; Atena era a Professora com sua arte de ensinar; Artemis era a ViĆŗva, mulher caƧadora para alimentar os filhos; Hermes era o Fofoqueiro, mensageiro de tudo que acontecia nas redondezas; Apolo era o Sanfoneiro, espalhando sua arte para animar a comunidade; Hera era a Parteira, arrumando casamento para os outros e ajudando no nascimento dos filhos; DemĆ©ter era a Agricultora, mulher forte que ajudava o marida nas plantaƧƵes e colheitas; Ares era o PolĆtico, semeando a guerra entre as pessoas para colher os frutos do voto; e HĆ©stia era a Apaixonada, uma sertanejinha linda que nunca arrumou casamento. Existiam ainda os semideuses, que eram todos os heróis sertanejos. Foi previsto pelo orĆ”culo que mais tarde nasceria um herói chamado ZĆ© de JuliĆ£o.
Um dia, atĆ© hoje contam, surgiu um só Deus para colocar ordem naquela bagunƧa toda. Tentou, tentou, mas deu no que deu. Mas essa Ć© outra história…
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com