De quem é a responsabilidade do delito?
Um ensaio sobre Psicanálise Criminológica
“A moralidade é o instinto do rebanho no indivíduo.”
Friedrich Nietzsche
A Criminologia é uma matéria interdisciplinar, diferente do Direito Penal que é dogmático. Por isso na análise do comportamento criminoso tem a Psicanálise por aliada. O estreitamento entre esses campos faz aumentar, no Brasil, as teses de conclusão de curso, de pós-graduação e doutorado, assim como seminários de Direito, tendo a Psicanálise como fronteira altamente atrativa de estudo.
O especialista em processo penal Jacinto Coutinho, em “O Estrangeiro do Juiz ou o Juiz é o Estrangeiro?”, declara que o Direito não tem salvação sem as luzes o discurso psicanalítico.
A Psicanálise disserta com desenvoltura sobre o crime, o criminoso, a violência, a vítima, a criminalidade, sobre os processos de criminalização e as formas de controle social. A Psicanálise impele a evolução da Criminologia como ciência. Por estar próxima à Psiquiatria contribui para a compreensão da etiologia do crime. Procura avaliar as causas psíquicas profundas e suas dimensões na vida pessoal e na sociedade.
A Criminologia não pode controlar o comportamento delitivo, enquanto a Psicanálise, embora não sendo saber médico, pode obter um diagnóstico estrutural das enfermidades do criminoso a partir de técnicas analíticas bem definidas e conduzir soluções, inclusive terapêuticas, mais eficientes. No entanto a Psicanálise exerce um efeito corrosivo na Criminologia e no Direito Penal quando labora na “despatologização” do criminoso.
Os atuais modelos acadêmicos da Criminologia recebem contribuições significativas das correntes psicanalíticas, desde Freud, para a formação de modelos para a prática profissional em procedimentos científicos. Com a Psicanálise a Criminologia saiu da ingenuidade histórica quando adotava as concepções de Ferri, Lombroso e Garófalo.
O criador da Psicanálise, ou Psicologia Profunda, Sigmund Freud, conforme escreve em “O Futuro de Uma Ilusão”, diz que o indivíduo é inimigo da civilização. Os poderes coercitivos põem freio aos impulsos e aos desejos naturais. O homem que renunciar a instintos poderosos pela imposição opressiva e repressiva. Este fenômeno gera a tensão cultural que predomina nos relacionamentos entre humanos e deste com a sociedade.
Assim sendo a civilização parece se erigir sobre a renúncia dos instintos e sobre a coerção. Porque a potência dos instintos não deve se transformar em ato. E o curso deste processo civilizatório resultou na aquisição de uma segunda natureza humana em permanente confronto com a sua situação original. Isto, projetado na primeira infância, deixa vestígios que repercutem na idade adulta sob a forma de psicopatias.
Neste modelo de civilização a felicidade só existe pela coação dos desejos e pelo sofrimento (Superego), o que nem sempre é absorvido, mas que invariavelmente resulta em culpa (Ego) e desta necessidade de autopunição vivem as religiões. Porque, no caso do ideal cristão, o homem é escravizado pela “culpa original” e no processo de conversão se estabelece uma falsa interpretação do mundo que dá privilégio ao sofrimento sabotando a vida saudável.
O mecanismo psicológico inconsciente da punição é a projeção do delinquente como bode expiatório. A extrojeção da agressividade e do sentimento de culpa sobre o delinquente é analisado, na literatura psicanalítica, através da imagem da expiação carregada pelos sentimentos de culpa da comunidade.
A pesquisa de Freud revela que o sentimento de culpa, inconscientizado, é exteriorizado por meio do delito e do masoquismo moral. Se a culpa for interiorizada esta resultará em ressentimento com atribuição da culpa à outra pessoa e à sociedade. Ao tomar contato com essa realidade o filósofo Jean-Françoise Lyotard, em seu livro “Lo Inhumano”, concluiu que “toda educação é inumada porque não funciona sem coação e terror”.
No texto “Os Vários Tipos de Caracteres Descobertos no Trabalho Analítico”, Freud revela que pessoas honradas e moralistas cometeram crimes na juventude e na idade adulta. Esta etiologia conduz à “despatologização” do crime e do criminoso.
Os crimes de “colarinho banco” destituem a Criminologia de seu objeto mais precioso que é a “patologização” do delito e do delinquente. Esta assertiva é de Edwin Sutherland quando derruba as hipóteses de que o delito é devido a patologias pessoais e sociais. Para ele as patologias não explicam os delitos de “colarinho branco” porque estes não são fatores essenciais nos crimes que ordinariamente afrontam os departamentos policiais e os tribunais penais juvenis.
As correntes psicanalíticas vieram desfazer a imagem do criminoso como ser degenerado dado à sua inferioridade biológica, antropológica e psicológica. A teoria psicanalítica do crime faz com que as oposições entre homem honesto e criminoso deixem de existir.
Para Freud os fatores externos não tem nexo causal algum e se o autor do crime fosse sincero deveria confessar que ele mesmo ignora no fundo porque o cometeu. Carente de motivos psíquicos o delinquente racionaliza o que em verdade é irracional.
Em “A Psicanálise e o Diagnóstico dos Fatos nos Processos Criminais”, Freud diz que falta garantia ao depoimento, tanto no interrogatório do réu como na oitiva de testemunhas: um inocente neurótico poderia reagir como culpado por causa de um “sentimiento de culpabilidad preexistente en él y en acecho constante de una ocasión propicia se apodere de la acusación de que se trate.” Aliás, a prova testemunhal já resultou em inúmeras condenações em casos considerados “discutíveis”.
Os mecanismos do direito penal são desestruturados na responsabilização do ato ilícito porque o crime é construído como produção inconsciente.
Estamos diante da necessidade do desenvolvimento de novos métodos de investigação judicial.
As teorias psicanalíticas da sociedade punitiva rompem com a legitimidade do direito penal. Em Willhelm Reik, discípulo direto de Freud, se estrutura a teoria psicanalítica do direito penal pela dupla função da pena: individual, com a satisfação da necessidade inconsciente de punição do criminoso que conduz e societária, pela realização do desejo comunitário na sua inconsciente identificação com o delinquente. Ambas as hipóteses seguem a teoria freudiana do criminoso por sentimento de culpa.
As mórbidas e sensacionalistas descrições de crimes na imprensa refletem a necessidade de identificar o criminoso como catalizador sobre o qual são projetadas as tendências criminosas inconscientes do corpo social.
O efeito catártico da pena e o processo de identificação da sociedade com o delinquente são princípios construtores da teoria psicanalítica do direito penal.
O psicanalista Jacques Lacan, em “Introdução Teórica às Funções da Psicanálise em Criminologia”, vai além de Freud e sustenta a inexistência de instintos criminosos. Ele faz perceber que o criminoso é sujeito e não objeto de intervenção criminológica.
A atual Psicanálise transcende a opinião de Freud para o qual a civilização elevou o homem acima da natureza animal. Para a Psicanálise Integral (Trilogia Analítica) o homem pós-freudiano é de natureza transcendental e trilógico, ou seja, ente integrado de corpo, alma e espírito. Neste ponto o homem supera a mera capacidade de controlar as forças da natureza para dela extrair riquezas e passa ao controle de si mesmo. A História demonstra, no entanto, que a humanidade ficou enferma e fracassou neste último paradigma – o fim para o que foi criada.
Para Norberto Keppe, idealizador da Trilogia Analítica, as psicopatologias brotam de três fatores mórbidos: inveja, inversão e teomania. Para ele, no Brasil, os mais doentes são os nossos líderes políticos, educacionais e religiosos. As leis emanadas de uma sociedade mórbida é resultado deste momento histórico. A sociedade doentia delega, em momento anterior, o poder de decidir por ela, a fim de que possa culpar alguém do fracasso.
Os educadores moralistas revelam esta morbidez quando, frequentemente, segregam a verdade enquanto, sem o menor escrúpulo, querem impô-la a todos nem que seja pela força. Esta corrente de pensamento resulta em modelos de justiça odientos, vingativos, montados com a finalidade de excluir e eliminar aqueles para os quais as culpas são direcionadas.
Para o sociólogo Émile Durkheim o delinquente não é o membro doente de uma sociedade sã, mas elemento catalizador e regulador da vida social: “o delito faz parte, enquanto elemento funcional, da fisiologia e não da patologia da vida social.” Portanto o crime não é barbarismo em vias de extinção pelo processo civilizatório, mas constantes da natureza humana, presentes em sua primeira e última manifestação cultural.
Nas análises dos réus e condenados os laboratórios criminológicos se equivocaram por mais de um século. Isto foi objeto de denúncia de Paul-Michel Foucault em “Os Anormais” e “O Poder Psiquiátrico”.
A vida pregressa do imputado, não obstante a brutal distinção entre sua história de vida e o objeto da investigação, é escarafunchada de forma a dar mais poder à inquisição e assim justificar a pena.
A técnica psicanalítica é inadequada na produção da verdade processual porque o discurso jurídico-penal inquisitorial, busca a culpa e a punição.
Os estudiosos da Psicanálise Criminológica preferem substituir a pena por medidas pedagógicas. Assim pensa J. P. Porto-Carrero em sua “Psicologia Judiciária”: “a pena satisfaz somente á culpa intima, infantil, inconsciente, do juiz e da collectividade. Já a pedagogia aboliu a pena; e não nos cançamos de repetir: a pedagogia destruirá a penalogia.” A tática da intervenção junto ao criminoso requer a adoção de um saber multidisciplinar visando a readaptação: “isolamento conveniente, sem caracter de prisão, se faria a reeducação, pelos methodos pedagógicos e pela psychanalyse, unico meio actual capaz de mergulhar no inconsciente do individuo e de refazer-lhe o SuperEgo, isto é, de reconstrui-lo na capacidade de adaptação”.
O delito tem como fundamento a responsabilidade da conduta humana consciente, no crime culposo e nas hipóteses de erro. O conceito de inconsciente desloca o registro do eu do psiquismo e demonstra que a consciência não é soberana e que o eu não é autônomo. A ideia de inconsciente desestabiliza qualquer legitimidade de intervenção penal.
A situação se aprofunda por uma contingência histórica atual.
O antropólogo Rodolph Atcom, no seu livro “Síndrome de Densidade”, depois de percorrer dezenas de países concluiu que a humanidade atingiu a saturação populacional e em consequência ingressou em um estado de inconsciência – o “transe amoque”. Este termo ele retirou da prática de certa tribo africana, quando em guerra, de se lançar freneticamente em correria na frente do inimigo sem se importar em matar ou morrer.
Os habitantes das grandes cidades vivem mergulhados nesse transe inconsciente. O estresse e as doenças psicossomáticas são produtos evidentes desta síndrome. O criminoso não está cotado como exceção.
Na psicanálise moderna não há espaço para admitir o crime doloso, porque o momento psicológico do crime é concomitante a um transe mórbido, ao estado de inconsciência. Quanto ao crime culposo este é levado a efeito quando ocorre uma inserção da Consciência. Esta apenas submerge, por breves instantes, de um transe doentio. Segundo a Trilogia Analítica não haveria a hipótese de uma Consciência criminosa porque ela é, por essência, Beleza, Bondade e Verdade.
Não sendo a Consciência responsável pelo crime cessa todo efeito punitivo, fenece o Direito Penal.