PALAVRAS QUE DOEM

PALAVRAS QUE DOEM

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Rangel Alves da Costa*

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As palavras não nascem sozinhas, não surgem do silêncio do mundo que quer se manifestar, mas sim plantadas pelo olhar indagador do homem e colhidas depois para dar significado e sentido aos fenÓmenos e objetos. Aparecendo assim, da obscuridade e da dúvida, as palavras passam a refletir as verdades que o próprio homem se predispõe a aceitar. Assim, o olhar reconhece uma flor e a boca diz o seu nome. Esse nome conforta, faz bem ao espírito, mas basta que o mesmo olhar enxergue o espinho para que o pensamento ganhe outros contornos, pois existem nomes, conceitos e palavras que doem.

Quem diz manhã, tarde ou noite, apenas cita para nomear um fenÓmeno cuja pronúncia não possui maior relevância no estado de quem se expressa. Porém, palavras intencionalmente pronunciadas, ditas para atingir propositadamente o âmago ou a condição do outro, tornam-se como flechas envenenadas que afetam de morte o instinto racional do respeito ao próximo, que deve ser inato ao homem. A pacificação social, de repente, é abalada por uma simples expressão que dentro de si pode trazer o ódio, o racismo, o preconceito, a discriminação, a xenofobia, a intolerância, enfim, a tentativa de desvalorização do indivíduo ou de um grupo social.

O que pode estar escondido, camuflado atrĆ”s das palavras? ƀ primeira impressĆ£o talvez nada. Mas alguĆ©m disse que vocĆŖ Ć© um negrinho de alma branca; que por ser negro tem que saber onde pisa; que vocĆŖ e sua raƧa nĆ£o prestam; que a culpa Ć© da Princesa Isabel que aboliu a escravidĆ£o; que vocĆŖ nĆ£o sabe com quem estĆ” falando; que tem religiĆ£o e vocĆŖ bate tambor; que tem sangue nas veias e vocĆŖ tem piche; que mora e vocĆŖ se esconde; que Ć© apenas motorista do carro que diz ser seu; que seu currĆ­culo Ć© uma folha de antecedentes; que pra ser rico tem que ter roubado. Somente pessoas fazem tais afirmaƧƵes e somente a pessoas estas sĆ£o dirigidas. Mas quem fala e quem ouve nĆ£o sĆ£o igualmente pessoas, com as mesmas qualidades bĆ”sicas do homem?

O preconceito, com o racismo como uma de suas variantes, jĆ” foi difundido atĆ© por embasamentos cientĆ­ficos. Em 1758, o naturalista e mĆ©dico sueco Lineu, ao estabelecer a classificação dos seres vivos dividiu a espĆ©cie humana em quatro subespĆ©cies: americanos ā€œgeniosos, despreocupados e livresā€, asiĆ”ticos ā€œseveros e ambiciososā€, negros ā€œardilosos e irrefletidosā€ e europeus ā€œativos, inteligentes e engenhososā€. Presume, assim, a existĆŖncia de raƧas superiores. Em 1855, o francĆŖs Gobineau lanƧou um estudo concluindo que a miscigenação Ć© uma das causas da decadĆŖncia das sociedades e defendeu a superioridade da raƧa ariana. Com viĆ©s essencialmente racista, alguns estudos apontam que os negros tĆŖm maior vocação para o crime, pois a maioria dos presidiĆ”rios possui algum grau de ascendĆŖncia africana. Como prova cientĆ­fica nada disso tem valor algum, vez que por baixo da pele as caracterĆ­sticas sĆ£o comuns a todos os povos.

Contudo, inegÔvel é o fato de que ver o outro com inferioridade e negativamente diferente continua persistindo entre muitos. O olhar repele, o corpo se afasta, a boca não avalia a profundidade das expressões que podem ser ditas. Mas quem abre a boca e diz o que quer, sem medir as consequências de suas palavras, pode incorrer no erro de querer qualificar o outro com aquilo que somente lhe cabe. Muitas vezes, atinge o próximo simplesmente para esconder frustrações, para querer criar uma inferioridade no outro que esconda sua própria fragilidade, para mostrar um poder que não tem e outra coisa não é senão arrogância, estupidez e grosseria. Seria discriminação citar determinadas atitudes nojentas de brancos, ricos ou que se acham assim?

Para muitos, todos não são iguais nem perante a lei. A pretensa isonomia na condição de cidadãos que deveriam ter direitos e deveres iguais constitui-se em mera construção jurídico-filosófica de insignificante aplicabilidade. Por mais que se queira negar, parece haver um pacto social no cotidiano onde as diferenças devem prevalecer para que a própria sociedade se sustente numa relação entre dominantes e dominados e se exteriorize na aceitação do preconceito, da discriminação e da exclusão.

Nesse contexto, torna-se apenas bonito – e simplesmente isso – saber que existem normas constitucionais que pregam a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raƧa, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; que a prĆ”tica do racismo Ć© crime apenado com reclusĆ£o; que sĆ£o proibidos tratamentos excludentes pela opção sexual de cada um; que o respeito aos direitos humanos, no contexto da prevalĆŖncia maior da dignidade humana, deve ser a regra do convĆ­vio social e nĆ£o a exceção.

As normas constitucionais, contudo, mesmo possuindo o carĆ”ter de auto-aplicabilidade, nĆ£o tĆŖm o poder de alcanƧar o indivĆ­duo no seu sentido Ć©tico, moral e humano de ser, fatores estes que correspondem ao modo comportamental e de conduta de cada um. Desse descompromisso entre o como deveria ser e o que realmente Ć©, Ć© que passam a prevalecer os absurdos cotidianamente observados nas relaƧƵes nada sociais entre ā€œaqueles que se achamā€ e aqueles que verdadeiramente sĆ£o. TambĆ©m de nada adiantaria dizer que a culpa Ć© somente do pretenso branco que discrimina os negros, pardos e outras cores frutos da miscigenação, pois o inverso tambĆ©m existe nas tantas organizaƧƵes afro-culturais que se espalham por aĆ­. Tudo talvez seja uma questĆ£o de saber quem quer ser submetido.

Pressupondo que o egocentrismo pretenda fazer da lei escrita e da lei humana letras mortas com relação Ć s prĆ”ticas discriminatórias, que o Salmo 38, sobre a Brevidade da Vida, possa ressoar como verdade na mente de cada um: ā€œDisse consigo mesmo: Velarei sobre os meus atos, para nĆ£o mais pecar com a lĆ­nguaā€.

Advogado e poeta

e-mail: rangel_adv1@hotmail.com