PRESO TEM DIREITOS?

PRESO TEM DIREITOS?

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Rangel Alves da Costa*

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O indivĆ­duo que estĆ” encarcerado por haver cometido um ato definido pela lei como crime, alĆ©m da repulsa social que imediatamente lhe Ć© imposta, do sofrimento familiar que Ć© acarretado – a famĆ­lia sempre sofre – e das conseqüenciais judiciais que a atitude pode gerar, a primeira pena que lhe advĆ©m, mesmo que mais tarde seja inocentado e libertado, Ć© ser privado de sua liberdade.

No cÔrcere, convicto ou não de sua falta de culpa, passa a receber o tratamento que todos conhecem: ofensa è sua integridade física, compartilhamento do cubículo com todos os tipos de presos, grave ameaça à saúde pela insalubridade da cela, total falta de higiene e precariedade no recebimento de alimentação, dentre muitos outros fatores que se tornaram prÔticas cotidianas no sistema prisional brasileiro.

Tais referências, adiante-se, dizem respeito ao preso em delegacia, unidade esta da polícia judiciÔria que tem, em meio a outras finalidades, a detenção temporÔria ou custódia de suspeitos e presos em flagrante delito. O que é analisado aqui não envolve, pois, o preso recluso em penitenciÔria e o detido em estabelecimento prisional agrícola e albergue.

Pois bem, uma vez preso, encaminhado Ć  delegacia e recolhido Ć  cela, logo passa a prevalecer um direito maior, que exsurge da sua própria condição humana, subjetiva, que Ć© o direito de defender-se provando sua inocĆŖncia. Isto porque contradizer a imputação criminal que lhe Ć© feita constitui uma intangĆ­vel defesa da liberdade como o bem maior de todos os bens jurĆ­dicos da pessoa humana, corroborada que Ć© pelo princĆ­pio da presunção da inocĆŖncia, pois toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocĆŖncia enquanto nĆ£o se comprove legalmente sua culpa. Ɖ este o sentido da norma constitucional prevista no art. 5Āŗ, inciso LVII: ā€œninguĆ©m serĆ” considerado culpado atĆ© o trĆ¢nsito em julgado de sentenƧa penal condenatóriaā€.

Desde o momento que ao acusado Ć© dada voz de prisĆ£o, em seu favor passa a prevalecer o direito constitucional de ter respeitada sua integridade, em conformidade com o disposto no art. 5Āŗ, XLIX: ā€œĆ© assegurado aos presos o respeito Ć  integridade fĆ­sica e moralā€. A Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84) tambĆ©m institui que ā€œImpƵe-se a todas as autoridades o respeito Ć  integridade fĆ­sica e moral dos condenados e dos presos provisóriosā€ (art. 40). Contudo, se por um lado o indivĆ­duo Ć© preso por um fato tipificado em lei, por outro lado estĆ” mesma lei (quiƧƔ a mais importante, que Ć© a constitucional) muitas vezes nĆ£o Ć© respeitada nem no momento da prisĆ£o e muito menos dentro das delegacias, demonstrado que estĆ” todos os tipos de agressƵes sofridas pelos detidos.

Em consonĆ¢ncia com a salvaguarda da integridade do preso, as autoridades e agentes policiais terĆ£o ainda de observar que ā€œninguĆ©m serĆ” submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradanteā€ (CF, art. 5Āŗ, III). Isto deveria significar, por exemplo, que nenhum preso deveria ser submetido a intimidaƧƵes, ameaƧas ou Ć  violĆŖncia fĆ­sica para assumir a prĆ”tica de um crime ou informar o nome de outras pessoas supostamente envolvidas. Ademais, a nĆ£o observĆ¢ncia da integridade como condicionante do respeito Ć  dignidade da pessoa humana, poderĆ” eivar de nulidade todos os atos do inquĆ©rito policial, se provado for que os elementos probatórios ali contidos foram forjados no interrogatório, por meio de constrangimentos, violĆŖncias ou ameaƧas.

A Constituição Federal de 1988, no artigo 5Āŗ, ainda prevĆŖ alguns direitos referentes aos presos que exigem observĆ¢ncia no Ć¢mbito processual. Assim, ā€œa prisĆ£o de qualquer pessoa e o local onde se encontre serĆ£o comunicados imediatamente ao juiz competente e Ć  famĆ­lia do preso ou Ć  pessoa por ele indicadaā€ (LXII); ā€œo preso serĆ” informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistĆŖncia da famĆ­lia e de advogadoā€ (LXIII); ā€œo preso terĆ” direito Ć  identificação dos responsĆ”veis por sua prisĆ£o ou por seu interrogatório policialā€ (LXIV); ā€œa prisĆ£o ilegal serĆ” imediatamente relaxada pela autoridade judiciĆ”riaā€ (LXV); ā€œninguĆ©m serĆ” levado Ć  prisĆ£o ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fianƧaā€. A inobservĆ¢ncia de tais aspectos terĆ” por conseqüência o surgimento de outro direito para o preso, que Ć© o de, atravĆ©s de advogado, impetrar pedido de habeas corpus (garantia constitucional para assegurar o direito Ć  liberdade de locomoção) perante a autoridade judiciĆ”ria competente.

Contudo, quando a norma constitucional diz que ao preso Ć© assegurada assistĆŖncia atravĆ©s de advogado, logicamente que estĆ” remetendo a defesa aos advogados estatais, que sĆ£o os defensores pĆŗblicos. NĆ£o poderia ser diferente, pois as famĆ­lias que podem prontamente constituir advogado nĆ£o iriam esperar, ou desesperar, que algum defensor venha em socorro do acusado. Ɖ falĆ”cia dizer que o preso tem, constitucionalmente, assegurada sua defesa, simplesmente porque isso nĆ£o ocorre, nĆ£o hĆ” preocupação alguma com relação a isso. Mas nĆ£o por falta de conhecimento da Defensoria PĆŗblica, pois no § 1Āŗ do art. 306, do Código de Processo Penal (acrescentado pela Lei nĀŗ 11.449/2007) consta que: ā€œDentro em 24h (vinte e quatro horas) depois da prisĆ£o, serĆ” encaminhado ao juiz competente o auto de prisĆ£o em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas e, caso o autuado nĆ£o informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria PĆŗblica.ā€ (grifo nosso)

No aspecto propriamente processual, até vinte e quatro horas após ser preso, o acusado terÔ direito que lhe seja entregue a nota de culpa. Esta consiste em um documento onde a autoridade policial dÔ ciência ao acusado dos motivos pelos quais ele foi preso, do nome do condutor que o trouxe à delegacia bem como do nome das testemunhas.

A negligĆŖncia da autoridade policial que, nos termos do art. 306 do CPP, nĆ£o expede a nota de culpa, torna-se um ā€œprato cheioā€ para a defesa do acusado. Isto porque a nota de culpa Ć© uma formalidade essencial, e o seu nĆ£o cumprimento enseja liberação imediata do preso por defeito formal da prisĆ£o ou o requerimento ao juiz criminal do relaxamento da prisĆ£o em flagrante, por inobservĆ¢ncia de um dos pressupostos materiais.

Consciente de sua inocência, é direito do acusado requerer à autoridade policial que cumpra a ordem constante do inciso 9º do art. 6º do CPP. Com efeito, diz o precitado dispositivo que logo que tiver conhecimento da prÔtica da infração penal, a autoridade policial deverÔ averiguar a vida pregressa do indiciado, sob o ponto de vista individual, familiar e social, sua condição econÓmica, sua atitude e estado de ânimo antes e depois do crime e durante ele, e quaisquer outros elementos que contribuírem para a apreciação do seu temperamento e carÔter. Isto é importante porque, diante de determinadas circunstâncias, a autoridade policial poderÔ deixar de lavrar o auto infracional, liberando o indivíduo, ou mesmo fazendo com que este responda em liberdade.

Sendo o preso acusado de praticar infração a qual nĆ£o seja cominada pena privativa de liberdade (reclusĆ£o ou detenção), ou seja, que a pena para o ilĆ­cito seja de prisĆ£o simples (infraƧƵes de menor potencial ofensivo ou contravenƧƵes, que possam gerar pena de multa, pena alternativa, pena restritiva de direitos etc.), terĆ” o direito de responder a acusação em liberdade, independentemente do pagamento de fianƧa, devendo a autoridade policial, logo após a lavratura do auto, colocĆ”-lo em liberdade. Do mesmo modo ocorre quando a pena cominada para a infração nĆ£o exceda a trĆŖs meses. Neste sentido Ć© o teor do inciso LXVI, do art. 5Āŗ, da CF: ā€œninguĆ©m serĆ” levado Ć  prisĆ£o ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fianƧa.

Nos casos previstos em lei, o arbitramento de fiança para que o acusado se defenda em liberdade é outro direito que deve ser assegurado pela autoridade policial ou pelo juiz, no caso do primeiro se negar a arbitrar ou nos demais casos do art. 323 do CPP. Contudo, como regra geral tem-se que só haverÔ cabimento de fiança na infração punida com detenção ou prisão simples não superior a dois anos. Ademais, o valor arbitrado para o pagamento da fiança deve ser compatível com a situação econÓmica do afiançado.

Sintetizando as disposições processuais acerca da concessão da liberdade ao acusado, tem-se que: a) Quem pratica infração penal punida com pena privativa de liberdade não superior a três meses, deve ser imediatamente solto, sem qualquer obrigação processual; b) No Juizado Especial Criminal, mesmo que a pena seja superior a três meses, mas não exceda a um ano de privação de liberdade, o acusado assinarÔ apenas o compromisso de comparecer em juízo quando solicitado; c) Quem pratica infração penal punida com pena mínima privativa de liberdade inferior ou igual a dois anos poderÔ ser posto em liberdade provisória mediante o pagamento de fiança, arbitrada quer pela própria autoridade policial (somente em relação a crimes punidos com pena de detenção), quer pela autoridade judiciÔria; d) nos crimes com pena mínima superior a dois anos não é cabível a fiança, o que não obsta a colocação do infrator em liberdade provisória pelo juiz, mediante o simples compromisso de comparecer aos futuros atos processuais, desde que ausente motivo para a prisão preventiva ou presente causa excludente de criminalidade.

Muitas vezes alguns delegados se fazem de esquecidos, mas é preciso que o indivíduo que estÔ preso em virtude de flagrante saiba que o prazo para que o inquérito seja concluído é de dez dias. Tal prazo é fatal e se a peça processual não for concluída nesse lapso temporal, o acusado terÔ o direito de impetrar ordem de habeas corpus, nos termos do art. 648, II, do CPP. Caso o indiciado esteja solto, tal prazo passa a ser de trinta dias, podendo ser prorrogado pela autoridade judiciÔria a requerimento do delegado.

Como observado, pequenas nuances podem fazer a diferença entre a liberdade e a prisão. Certamente a maioria dos indivíduos que são presos desconhece totalmente tais preceitos constitucionais e penais que, no primeiro momento, caracterizam-se como direitos que devem ser assegurados a qualquer custo, principalmente porque o indivíduo não estarÔ inventando nada, mas apenas socorrendo-se das prerrogativas da lei, sob pena de permitir que continuem prevalecendo as prisões arbitrÔrias, o total desrespeito aos direitos humanos (integridade física e dignidade, principalmente) e de ser jogado nesses antros putrefatos que são as cadeias. Porém, como lições de segurança e precaução, as famílias devem conhecer tais norteamentos bÔsicos se tiverem que enfrentar as armadilhas da vida e da fragilidade humana. Deus permita que não.

Advogado e poeta

e-mail: rangel_adv1@hotmail.com