A MORTE PELO NARIZ

A MORTE PELO NARIZ

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Rangel Alves da Costa*

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Quando uma criança vai se desenvolvendo no ventre da mãe, aos poucos vão surgindo suas formações, os membros vão se constituindo e seu mundo sensorial vai sendo despertado. Na vigésima semana de gestação, por exemplo, o olfato se forma. O discernimento dos odores que vai surgindo acompanharÔ o indivíduo pela vida inteira, pois os cheiros e os aromas trazem sensibilidade e até efeitos físicos, e o nariz passa a conduzir parte do destino da pessoa.

Como parte do sistema respiratório, do nariz frui o hÔlito humano da vida, que é a respiração; nasce um diÔlogo essencial com o ar atmosférico; surge a noção do cheiro agradÔvel ou desagradÔvel; direciona o indivíduo para o ar puro dos campos, das montanhas, dos jardins, das flores. Porém, quando o dono do nariz deixa de respirar o bem e prefere aspirar o mal, a vida pode inverter-se na morte.

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Qualquer coisa que esteja perto do nariz desprende moléculas de odor que se espalham pelo ar, penetram nas narinas e atingem um grupo especial de células na porção mais interna, próximo à base do crânio, disparando mensagens químicas que permitem ao cérebro decifrar o que aquele elemento significa. Este é o mesmo processo nas primeiras absorções das drogas usadas por via nasal. Com a constância do uso, é o próprio nariz que começa a morrer, deixar de funcionar corretamente.

Por que aquele pó branco, indolor, é tão desejado pelas narinas dos que não querem mais cheirar a vida? Por que inalar o cheiro forte do líquido se a vida requer solidez? Por que o pó cristalino não é sinÓnimo de pureza? Por que inalar, aspirar ou cheirar psicoestimulantes se a mente nasceu com o homem para estimular as coisas boas da vida? Por que o pó branco forma sempre uma nuvem negra no indivíduo? Por que drogas e por que drogars-se, afinal?

As drogas existem, Ć© fato, e os drogados se multiplicam. Contudo, a vida nĆ£o pode e nĆ£o deve se resumir ao pó, branco ou cristalino que seja. Droga, como o próprio nome diz, Ć© uma substĆ¢ncia proibida, de uso ilegal e nocivo ao indivĆ­duo, modificando-lhe destrutivamente o carĆ”ter e o comportamento. CocaĆ­na, que vai causando danos cerebrais a cada dose; heroĆ­na (chasing the dragon“), que tambĆ©m causa danos irreversĆ­veis ao cĆ©rebro e outros graves problemas de saĆŗde; drogas depressoras inalantes (Ć©ter, cola de sapateiro, benzina, acetona, tinner etc), que desestabilizam o sistema nervoso e podem causar parada respiratória; metanfetaminas (ice, cristal, speed e meth), que provocam desequilĆ­brio quĆ­mico cerebral; e maconha e haxixe, que tambĆ©m podem ser cheirados, sĆ£o drogas que primeiro destroem as vias nasais e as mucosas e depois acabam destruindo o indivĆ­duo.

A partir do nariz, se cheiradas, aspiradas ou inaladas, as drogas passam a produzir múltiplas sensações, que certamente não são de aromas nem de perfumes ou de bem-estar do espírito. Até que no primeiro momento o usuÔrio pode ter a sensação de grande força e iniciativa, grande excitação e euforia, alucinações, impressão de força muscular e mental, desinibição, aumento ilusório de energia, encorajamento e força expressiva, dentre outras falsas noções. Mas tudo não passa de minutos, de poucas horas, pois a seguir o mundo começa a desabar e a realidade que surge é assustadora: a morte diz que é preciso mais.

Imagine só: Certa vez um drogado contumaz afirmou, jĆ” nas raias da fronteira da loucura, que era viciado e que cheirava pó porque ele mesmo era pó e ao pó haveria de retornar. ā€œPois tu Ć©s pó e ao pó haverĆ” de retornarā€, diz o ditado bĆ­blico sobre a fragilidade do homem, e ele achou que estava justificando sua atitude de maneira digna, religiosamente correta. E nĆ£o deu outra: abandonando o lar e a famĆ­lia, sem ter mais amigos para sustentar o vĆ­cio, passou a dormir em baixo de marquises, usando jornais e papelƵes como cobertor. Numa manhĆ£ encontraram basicamente cinzas no local, pois atearam fogo no meio da noite e, sem querer, o indivĆ­duo virou pó, cinzas. Plantou e colheu aqui mesmo.

Contam ainda que o viciado nĆ£o fala, ā€œtroca leroā€ com os da mesma ā€œlaiaā€. Assim Ć© construĆ­da uma frase inteligente: Na Ćŗltima ā€œpegadaā€ mano fiz uma ā€œbad tripā€ (viagem ruim, com sofrimento) e agora tĆ“ de ā€œlaricaā€ (fome quĆ­mica) e preciso ā€œmatar a laraā€ (matar a fome quĆ­mica), sem ā€œsujeiraā€ (situação perigosa). Tire aĆ­ o pó do ā€œmocĆ³ā€ (esconderijo) que vou dar uma cheirada, sem ā€œnóiaā€ (preocupação) e depois vou ā€œmocosarā€ (esconder) no maior ā€œsussĆŗā€ (sossego). E o outro entende e dialoga da mesma forma, e o outro age da mesma forma e certamente morrerĆ” da mesma forma.

No mundo de múltiplas, boas e prazerosas opções, de encantadoras e suaves fragrâncias, o indivíduo optar utilizar suas narinas para aspirar lentamente o suicídio, para sentir a putrefação da morte e para viajar por abismos é, no mínimo, uma indignidade para com a vida que lhe foi concedida. E por ser breve a vida, e porque nela o homem tem uma digna missão a cumprir, e porque sem construir o bem a vida não merece ser vivida, é que o pó destruidor não pode ser o limite entre o indivíduo em sua plenitude e o seu espectro. Essa fronteira seria facilmente ultrapassada se, ao invés de cheirar, o jovem soprasse para longe suas influências e seguisse adiante com firmeza e dignidade.

Para os que ainda têm tempo, para os que ainda pensam na vida como uma coisa bela, uma só frase: Ao amanhecer, procure um jardim e sinta o aroma das flores, depois escolha o perfume que você quer ter na vida e siga adiante.

Advogado e poeta

e-mail: rangel_adv1@hotmail.com