Crise de Identidade(s): analisando Dorian Gray e Jacobina.
Roberto Rodrigues Campos.
Universidade do Estado da Bahia ā UNEB/ BA.
RESUMO: O presente trabalho visa aprofundar o conhecimento sobre o(s) conceito(s) de Identidade(s) e sua importĆ¢ncia para o processo de autoconhecimento, bem como analisar as obras O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde e O Espelho, de Machado de Assis, e o longa-metragem Alice no PaĆs das Maravilhas, de Tim Burton, a fim de salientar a existĆŖncia desse tema tĆ£o polĆŖmico e duvidoso tal como sua coexistĆŖncia ficção-realidade obra/mundo, atravĆ©s dos mecanismos de anĆ”lise textual e comparativa, contendo fundamentos baseados, principalmente, no teórico Stuart Hall.
PALAVRAS-CHAVE: Identidade; Juventude; Dorian Gray; Jacobina; Alice.
INTRODUĆĆO
O Retrato de Dorian Gray e O Espelho mostram os perigos de perseguir um ideal de auto-exclusĆ£o de todas as complexidades alĆ©m das divisƵes de uma psique viva. Jung defende a idĆ©ia de que a psique pode ser dividia em o consciente e o inconsciente, sendo que, no caso do inconsciente, ainda hĆ” uma subdivisĆ£o em inconsciente pessoal e coletivo. Psique, entĆ£o, Ć© conceito dado ao self, ou seja, āsi-mesmo”, que se relaciona a mente, a alma e o ego. Ou seja, sĆ£o tipos de texto literĆ”rio diferentes abordando a mesma coisa: crise na alma e na identidade humana.
O irlandĆŖs Oscar Wilde foi um poeta, romancista e dramaturgo fabuloso, nascido na Inglaterra em 1854, vivendo apenas 46 anos. Considerado excĆŖntrico, ele era o lĆder do movimento estĆ©tico que defendia a “arte pela arte” e fora preso por dois anos com trabalhos forƧados por prĆ”ticas homossexuais. Dentre vĆ”rios trabalhos e vĆ”rias peƧas que escrevera, como por exemplo, āA ImportĆ¢ncia de Ser Honestoā (The Importance of Being Ernest), Wilde destaca-se em seu Ćŗnico romance, hoje mundialmente conhecido ā O Retrato de Dorian Gray (The Picture of Dorian Gray).
No romance O Retrato de Dorian Gray, Wilde complica a sua própria noção de identidade atravĆ©s da arte, mostrando o seu perigoso e irresponsĆ”vel lado. Ele o cria baseando-se numa espĆ©cie de trĆade. Ao invĆ©s de simplesmente concentrar-se na dicotomia entre o autor / escritor, ele parte para as trĆŖs diferentes posiƧƵes de sujeito: o artista (ou o escritor), o modelo (ou personagem), e as audiĆŖncias (ou o leitor). E Wilde simbolicamente representa essas trĆŖs posiƧƵes atravĆ©s de seus personagens principais: Basil Hallward, Dorian Gray e Lord Henry Wotton. O retrato Ć© pintado por Basil Hallward, inspirado por Dorian Gray, e observados por Lord Henry Wotton, cujas opiniƵes permitem Basil completar o quadro: o pintor, que produz a tela, o modelo, que empresta sua beleza, e o perito, que interpreta e, portanto, conclui o que deve ser visto. Ć sobre esse triangulo artĆstico que a estória se desenrola.
Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), um dos atĆ© entĆ£o mais admirados escritores brasileiros, Ć© autor de romances famosos no mundo inteiro como Dom Casmurro, por exemplo. Ć, no entanto, atravĆ©s de seus contos que ele sintetiza suas principais qualidades de escritor, como o artifĆcio da ironia, que nĆ£o só o revelava como alguĆ©m descrente da realidade, como alguĆ©m de postura literĆ”ria invejĆ”vel. Em seu conto O Espelho, Machado conta sobre um homem, Jacobina, que interrompe a conversa de quatro amigos para dar sua opiniĆ£o a respeito da alma humana. Essa opiniĆ£o desenrola-se numa estória que acontecera com o próprio Jacobina quando jovem onde, após ter conquistado o posto de alferes, percebe-se sozinho, atĆ© que um dia ele veste seu uniforme de alferes e olha-se no espelho, encontrando assim o outro lado de sua alma, retirando-o, por conseguinte, da āsolidĆ£oā.
Após planar sobre essa duas obras renomadas, este trabalho busca entender o(s) conceito(s) de identidade(s), baseando-se, primordialmente, nas idĆ©ias defendidas por Stuart Hall, e, a partir daĆ, discutir a questĆ£o da identidade nas obras de Machado de Assis e Oscar Wilde, bem como no filme Alice no PaĆs das Maravilhas, de Tim Burton.
O ESPELHO
Um grupo de amigos reĆŗne-se para discutir sobre coisas metafĆsicas. Junto a este grupo, encontra-se um homem calado, atĆ© que o assunto āalma humanaā vem Ć tona, fazendo o atĆ© entĆ£o silencioso homem afirmar que nĆ£o existe uma alma humana, mas duas. Causando espanto nos demais homens, ele continua sua linha de raciocĆnio contando-lhes uma estória na qual ele mesmo Ć© o protagonista. Seu nome: Jacobina.
Jacobina conta ao grupo que, aos 25 anos, fora nomeado alferes da Guarda Nacional. Tornou-se o centro das atenƧƵes, por pertencer a uma famĆlia pobre. A atenção foi tamanha que ele passou a ser conhecido como Senhor Alferes. Um belo dia, sua tia Marcolina convidou-o para passar alguns dias em sua casa. Como a tia tambĆ©m nĆ£o era rica, pediu-lhe que fosse usando a farda de alferes. Toda orgulhosa, presenteou-o com um grande espelho.
Ao se olhar no espelho, Jacobina não conseguia mais se enxergar; enxergava, somente, um homem trajado de alferes da Guarda Nacional. Sentira que ele, Jacobina, se fora, deixando a maquiagem de alferes em seu lugar. Por mais que pedisse à tia Marcolina que lhe chamasse de Joãozinho, como fazia antes da promoção, a tia só o chamava de Senhor Alferes.
Por fim, ele encontrou-se sozinho numa manhĆ£. Após, entĆ£o, alguns dias, durante todo aquele silĆŖncio no qual ele se encontrava, ele resolveu olhar-se, de novo, no espelho ā fazia dias que ele evitava isso – a fim de encontrar-se. Jacobina se vĆŖ como costumava se ver, e, como teste, resolveu por a farda de alferes e olhar-se no espelho. E o conto termina com os quatro amigos dando-se conta de que o narrador, Jacobina, jĆ” nĆ£o mais estava lĆ” na sala, entre eles.
O RETRATO DE DORIAN GRAY
Um pintor, Basil Hallward, pinta um retrato de um belo jovem chamado Dorian Gray. Durante a última sessão de pintura, Dorian, que tem até então fora completamente inocente, tanto em relação a sua beleza e quanto ao mundo, encontra-se amigo de Lord Henry Wotton, que abre seus olhos para a natureza passageira da sua beleza e diz que ele deve experimentar a vida ao mÔximo, pois um dia irÔ envelhecer. Dada a conclusão do retrato, Dorian, após reconhecer-se belo demais e amedrontado por um dia perder sua beleza, deseja em voz alta que a pintura envelhecesse em seu lugar.
Devido Ć influĆŖncia de Lord Henry, Dorian sai Ć procura de paixƵes, ou melhor, de luxĆŗria, e se apaixona por uma atriz talentosa, Sibyl Vane. Quando ela se apaixona por ele, porĆ©m, ela percebe a falsidade de sua vida, que tudo o que importava para ela e sua famĆlia, antes de conhecer Dorian, era apenas dinheiro. No meio desta crise, surge uma oportunidade de Dorian, Lord Henry e Basil a assistirem numa de suas apresentaƧƵes, a qual fracassa. Dorian, entĆ£o completamente decepcionado, perde todo o respeito e amor por ela, e rompe o noivado. Ele vai para casa para descobrir que a pintura se tornou um pouco mais cruel para o futuro, e no dia seguinte, só depois de resolver voltar e se casar com ela, independentemente, descobre que Sibyl se matou. Como o quadro comeƧa a preenchĆŖ-lo com medo, Dorian o tranca em uma sala antiga de casa.
Dorian encontra certa alegria, ao longo dos anos seguintes, em cometer atos pecaminosos e prazerosos, e observando a mudança do retrato, ele vê que não perde nada de sua beleza ou juventude, mas a sua imagem pintada sim fica velha e feia. Ele entra constantemente em contato com Lord Henry, que alimenta sua opinião sobre um novo hedonismo, a busca de prazer, não da moralidade que deve assumir para o mundo. Anos se passam e Basil procura Dorian em sua casa. Ao ser recebido, percebe que o quadro não se encontra mais a mostra como antes e começa a questionar Dorian, que, por não tê-lo visto por um longo tempo, finalmente, lhe mostra o que aconteceu com seu retrato. Basil fica horrorizado e tenta fazê-lo arrepender-se, mas Dorian acaba por matÔ-lo.
Dorian se torna cada vez mais ansioso e temeroso que alguĆ©m possa descobrir seu segredo. James, o irmĆ£o da falecida Sibyl, foi Ć procura dele dezoito anos depois da morte de sua irmĆ£. Ele encontra Dorian, joga na sua cara que Sibyl o considerava seu PrĆncipe Encantado e que ele a largou e a fez se matar, o que significava Dorian ser o culpado de sua morte. Assim sendo, James ataca Dorian, mas nĆ£o obtĆŖm sucesso. Dorian deixa-o ir, mas antes lhe mostra que nĆ£o mudara nada em tanto tempo. Dias depois, um homem Ć© acidentalmente baleado e morto, e Dorian descobre que este homem era James. Ele decide que a partir deste momento em diante, ele vai ser bom, e fazer isso, ele deve se livrar da ansiedade e do medo constante de que ele estĆ” sentindo, ou seja, ele deve destruir o retrato. EntĆ£o ele apunhala o retrato. Quando a polĆcia chega, vĆŖ o retrato de como era quando era novo, e um homem horrĆvel, velho e desfigurado estirado ao chĆ£o, morto.
IDENTIDADE(S)
O que é que torna alguém bonito? à tudo apenas aparência, como se devesse existir uma imagem perfeita em tudo? E ainda porque é que as pessoas quando encontram outra pessoa bonita, passam a admirÔ-la e não prestam mais atenção aos outros? Deve-se realmente ter que ser bonito para ser notado, para ter sucesso? Perguntas comuns para aqueles que se olham no espelho e se acham feios. Reposta simples? Sim! Porque ser bonito é tudo!
Para Oscar Wilde:
ā[…] a Beleza Ć© uma forma de Inspiração ā maior, sem dĆŗvida, que a inspiração, pois nĆ£o necessita explicar-se. Ć um dos grandes fatos do mundo, como a luz do sol ou a primavera, ou o reflexo nas Ć”guas escuras daquele escudo prateado a que chamamos lua. NĆ£o pode ser questionada. Tem seu direito divino de soberania. Torna prĆncipes todos aqueles a tĆŖm. […] As pessoas dizem Ć”s vezes que a Beleza Ć© apenas superficial. Pode ser que seja. Mas, pelo menos, nĆ£o Ć© tĆ£o superficial quanto o Pensamento. […] a Beleza Ć© a maravilha das maravilhas. SĆ£o apenas as pessoas superficiais que nĆ£o julgam pelas aparĆŖncias. O verdadeiro mistĆ©rio do mundo Ć© o visĆvel, nĆ£o o invisĆvel.ā (WILDE, 2009, p.44-45).
Wilde acredita que a Beleza Ć© capaz de tornar alguĆ©m maior que tudo e todos, como se ela fosse o regimento do que Ć© e/ou estĆ” certo ser ou nĆ£o. Pois bem, a Beleza entĆ£o pode ser dita como prazerosa, sentimental, āa maravilha das maravilhasā (WILDE, 2009, p.52). Para enfatizar mais a idĆ©ia de Wilde, observe o que se encontra no DicionĆ”rio Escolar de Filosofia:
āHarmonia, proporção, equilĆbrio, graciosidade, e elegĆ¢ncia sĆ£o alguns exemplos de propriedades estĆ©ticas […], mas a beleza Ć© a propriedade estĆ©tica mais central, para a qual contribuem propriedades como as anteriores. Ao contrĆ”rio do que por vezes se pensa, nĆ£o foram muitos os filósofos que procuraram identificar as caracterĆsticas que algo deve ter para se poder chamar “belo”. […]. Apesar de cada um deles enfatizar mais uma ou outra caracterĆstica, todos acabam por convergir na idĆ©ia de que a beleza Ć© algo 1) que tem um valor positivo; 2) que nos agrada ou proporciona prazer; 3) que Ć© inspirador e motivador; 4) cuja apreciação depende da percepção ou de alguma forma de contacto com o que Ć© objecto apreciação e 5) cuja apreciação Ć© independente de qualquer interesse teórico ou prĆ”tico, exprimindo-se atravĆ©s de um de juĆzo próprio, o juĆzo estĆ©ticoā. (ALMEIDA e MURCHO, 2009).
As prioridades para a beleza estĆ£o mudando com o tempo ā para as meninas Ć© muito mais importante do que para os meninos (nĆ£o Ć© realmente uma surpresa). O sexo feminino ā machismo a parte ā gosta de embelezar a aparĆŖncia externa, gosta de colocar coisas no rosto, cabelos e unhas, ama jóias e cores brilhantes. Olhe Cleópatra, que para mostrar que era uma grande rainha e uma bela mulher, andava enfeitada como se fosse uma Ć”rvore de Natal ambulante. E um homem, apenas um homem fez com que essa singularidade feminina fosse compartilhada, usufruĆda e levada a sĆ©rio pela classe masculina: Narciso ā e olhe que ele nĆ£o Ć© nem real.
Segundo Vasconcellos(1998):
āOs mitos gregos estĆ£o por toda parte ainda hoje. Estas narrativas, que um dia povoaram nĆ£o só a imaginação como tambĆ©m a vida cotidiana de todo um povo, perduraram no tempo e ainda hoje fascinam escritores, cineastas, escultores, psicólogos, antropólogos, etc. etc. Pode-se fazer delas o uso mais variado […]ā. (VASCONCELOS, 1998, p.8)
Existem diversas versƵes sobre o mito de Narciso, mas todas elas referindo-o com o auto-admirador que, na Mitologia Grega, Ć© famoso pela sua inigualĆ”vel e entorpecente beleza. O psicanalista e pesquisador MĆ”rio Quilici (1999) sugere que o nome Narciso, etimologicamente falando, significa entorpecimento, torpor. No narcisismo busca-se satisfação pessoal sobre a realização dos objetivos sociais, e conformidade aos valores sociais. Certo grau de narcisismo Ć© comum em muitas pessoas, mas ele se torna patológico quando o narcisista nĆ£o tem empatia normal e ele acaba utilizando-se outros impiedosamente para seus próprios fins; derivam sua auto-adoração de suas capacidades intelectuais e realizaƧƵes, focando no corpo, buscando a beleza, o fĆsico perfeito e a conquista sexual. Teoricamente falando, de acordo com Quilici(1999):
āO que o jovem Narciso amou foi a sua alma. Ć isso que se deseja dizer quando se fala no reflexo. Ele jamais pĆ“de abandonar as Ć”guas paradas da fonte. Narciso cometeu o suicĆdio porque ao recusar-se a abandonar a fonte, deixou de comer (receber). O suicĆdio Ć© explicito. O suicĆdio foi motivado pela desilusĆ£o: a imagem querida e amada que surge no reflexo nĆ£o possuĆa equivalĆŖncia no mundo real e objetivo. Assim sĆ£o os narcisistas: pessoas perdidas em si mesmas. NĆ£o se trata de se acharem lindos apenas. Ser lindo e bonito Ć© apenas uma parte do processo patológico desses indivĆduos. […] Seu estado narcĆsico Ć© uma defesa contra sua dor primeira. Ć por isso que o narcisista nĆ£o suporta ser contrariado e nem aceita que lhe digam que tem defeitos. […] Como todo ditador que se preze, o narcisista Ć© alguĆ©m que precisa de pĆŗblico, daqueles que o admirem de forma incondicional e irrestrita. Ć um dependenteā. (QUILICI, 1999).
O credo ao esteticismo literĆ”rio estava muito em moda nos tempos de Oscar Wilde ā Era Vitoriana ā e ele abraƧou sua filosofia sobre a importĆ¢ncia central da arte na vida. O movimento estĆ©tico englobou as artes visuais da literatura. Assim, o narcisismo paira majestosamente por essa Ć©poca tĆ£o revolucionĆ”ria e retrograda ao mesmo tempo, mas nĆ£o pĆ”ra nela simplesmente, pelo contrĆ”rio, segue pelos dias de hoje rumo ao amanhĆ£.
Observe e tente, entĆ£o, seguir esta linha de raciocĆnio: Casal A Ć© considerado esteticamente belo, enquanto o casal B nĆ£o. Estes sujeitos se separam pela concepção de beleza. O Casal A concebe um sujeito C e o casal B concebe um sujeito D, e assim, produzem estes sujeitos com base nas suas concepƧƵes. Supondo que os sujeitos C e D nĆ£o se sintam adequados Ć s concepƧƵes de seus pais, eles entĆ£o produzem uma nova concepção de beleza, uma nova idĆ©ia de um sujeito belo, e assim segue uma produção infinita e eclĆ©tica de sujeitos atravĆ©s do tempo.
A fim de entender melhor tal processo de produção de sujeitos, que lhes permitem apresentar-se ao tempo em que vivem e reconhecer-se como alguém único, a Psicologia estabeleceu o conceito de identidade.
Segundo Almeida e Murcho (2009), quanto se faz referência à identidade como formação e definição de um sujeito ao longo do tempo, dÔ-se o nome de identidade pessoal:
āAs pessoas persistem no tempo: existem em muitos momentos diferentes. Por exemplo, Ć© comum considerar-se que eu sou hoje a mesma pessoa que era quando tinha apenas dois anos de idade. Esta identidade aparente levanta, contudo, problemas filosóficos óbvios, pois nĆ£o tenho hoje quase nenhuma das propriedades mais salientes que tinha aos dois meses. O que faz cada um de nós ser a mesma pessoa ao longo do tempo, apesar das mudanƧas fĆsicas e psicológicas que se vĆ£o acumulando? Uma possibilidade Ć© que a nossa identidade ao longo do tempo se deva essencialmente Ć continuidade corporal: ao facto de termos o mesmo corpo ao longo de toda a vida. Outra possibilidade Ć© a identidade pessoal consistir apenas na continuidade psicológica: no facto de termos estados mentais (como memórias, intenƧƵes, crenƧas e planos) que se mantĆŖm ao longo do tempo ou que se relacionam causalmente entre si.ā (ALMEIDA e MURCHO, 2009).
De acordo com BrandĆ£o (1986), o termo identidade esclarece a consciĆŖncia da posse de um eu, de uma realidade pessoal que torna cada sujeito Ćŗnico diante de seu próprio eu e dos outros eus. Para Erikson (1987), o termo identidade abrange muito do que BrandĆ£o entende por eu, e acrescenta que esse termo āse refere, na maioria das vezes, a algo ruidosamente demonstrativo, a uma ābuscaā mais ou menos desesperadaā (1987, p.17) por uma solução para algo que esteja errado conosco ou algo que estĆ” faltando para nos completar, ou, neste caso, para completar nossa āidentidade,quando ficamos cĆ“nscios do fato de que, sem dĆŗvida, temos umaā (1987, p.17).
Stuart Hall, uma das figuras mais importantes da Ć”rea de estudos sociais, afirma que āa questĆ£o da identidade estĆ” sendo extensamente discutida na teoria socialā (HALL, 2006). Ele ainda argumenta que āem essĆŖncia […] as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estĆ£o em declĆnio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivĆduo moderno, atĆ© aqui visto como um sujeito unificado.ā (HALL, 2006, p.1).
Hall atribui três diferentes concepções para a idéia de identidade, analisando três tipos de sujeitos distintos: o sujeito do Iluminismo, o sociológico e o pós-moderno:
āO sujeito do Iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa humana como um indivĆduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razĆ£o, de consciĆŖncia e de ação, cujo centro consistia num nĆŗcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo ā contĆnuo ou āidĆŖnticoā a ele ā ao longo da existĆŖncia do indivĆduo. […] A noção de sujeito sociológico refletia a crescente complexidade do mundo moderno e a consciĆŖncia de que este nĆŗcleo interior do sujeito nĆ£o era autĆ“nomo e auto-suficiente, mas era formado na relação com āoutras pessoas importantes para eleā, que mediavam para os sujeitos os valores, sentidos e sĆmbolos ā a cultura ā dos mundos que ele/ela habitava. […] O sujeito ainda tem um nĆŗcleo ou essĆŖncia interior que Ć© o āeu realā, mas este Ć© formado e modificado num diĆ”logo contĆnuo com os mundos culturais āexterioresā e as identidades que esses mundos oferecem. […] O próprio processo de identificação, atravĆ©s do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variĆ”vel e problemĆ”tico. Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como nĆ£o tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma ācelebração móvelā: formada e transformada continuamente em relação Ć s formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiamā. (HALL, 2006, p.10-13).
Pendendo mais para a idéia do sujeito social, Hall argumenta que as identidades estão se alterando de forma que sempre estarão em fixa mutação em relação às transformações do mundo contemporâneo:
āUm tipo diferente de mudanƧa estrutural estĆ” transformando as sociedades modernas no final do sĆ©culo XX. Isso estĆ” fragmentando as paisagens culturais de classe, gĆŖnero, sexualidade, etnia, raƧa e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizaƧƵes como indivĆduos sociais. Estas transformaƧƵes estĆ£o tambĆ©m mudando nossas identidades pessoais, abalando a idĆ©ia que temos de nós próprios como sujeitos integradosā. (HALL, 2006, p. 9)
A partir disso, Hall evoca a idĆ©ia de que os sujeitos dĆ£o inĆcio a uma ācrise de identidadeā, uma vez o que se considera padrĆ£o, nĆ£o mais se encontra solidificado.
CRISE DE IDENTIDADE(S)
Jung diz:
āO inconsciente […] Ć© tudo, […] Ć© objetividade ampla como o mundo e aberta ao mundo. Eu sou o objeto de todos os sujeitos, numa total inversĆ£o de minha consciĆŖncia habitual, em que sempre sou o sujeito que tem objetos. LĆ” eu estou na mais direta ligação com o mundo, de forma que facilmente esqueƧo quem sou na realidade. āPerdido em si mesmoā Ć© uma boa expressĆ£o para caracterizar este estado. Este si-mesmo, porĆ©m, Ć© o mundo, ou melhor, um mundo, se uma consciĆŖncia pudesse vĆŖ-lo. Por isso, devemos saber quem somos.ā (JUNG, 1999, p.32).
O impacto de um conflito sobre uma identidade e/ou uma cultura dĆ”-se pela forma de crise(s) de identidade(s). O termo ācrise de identidade” Ć© hoje aplicado aleatoriamente para quase qualquer perda de identidade ou auto-imagem, independentemente do fato de a imagem se aplicar a um adolescente ou um profissional de meia-idade. Erik Erikson, pioneiro dessa Ć”rea de estudo, aplicou esse termo a uma ampla gama de fenĆ“menos psicossociais, principalmente aflorados na adolescĆŖncia.
āA menos que seja prematura e desastrosamente provocada […], a crise de identidade nĆ£o Ć© viĆ”vel antes do comeƧo, tanto quanto nĆ£o Ć© dispensĆ”vel após o final da adolescĆŖncia, quando o corpo, agora completamente desenvolvido, cresce harmoniosamente numa aparĆŖncia individual. […] A crise da juventude Ć© tambĆ©m a crise de uma geração e da solidez ideológica da sua sociedade; tambĆ©m existe uma complementaridade de identidade e ideologiaā. (ERIKSON, 1987, p.310-311).
Para Erikson, a(s) “crise(s) de identidade(s)”, nĆ£o Ć©/sĆ£o só uma perda de identidade(s), mas mais corretamente uma perda de identidade do ego que surge como uma fase normativa no ciclo da vida humana. E, assim sendo, uma ocorrĆŖncia clĆ”ssica de crise de identidade, em função inclusive de seu carĆ”ter implacĆ”vel, e que pode ser vivida com mais ou menos sofrimento, Ć© a adolescĆŖncia.
As pessoas citam, por exemplo, Sócrates e Shakespeare, muitas vezes, sem saber ao menos que foram eles os autores das frases. Quando alguĆ©m diz āSó sei que nada sei!ā, ao contrĆ”rio de Sócrates, quer simplesmente afirmar que nĆ£o tem conhecimento sobre um determinado assunto, ou muitas vezes quer apenas abster-se de um interrogatório. O sĆ”bio Sócrates posicionou-se no lugar de um aprendiz.
Ficando claro que a identidade nĆ£o se limita em sua construção, estando sempre em processo de transformação contĆnua, pode-se entender por crise de identidade, entĆ£o, um conflito tambĆ©m constante da mesma e/ou de outras identidades de um ou mais indivĆduos, em qualquer tempo, a qualquer momento.
ALFERES ATRAVĆS DO ESPELHO
Quando alguĆ©m constrói uma afirmação, esse alguĆ©m nĆ£o a constrói do nada; hĆ” um longo tempo de observação, anĆ”lise, formulação de idĆ©ias, e, por fim, a construção da afirmação. āCada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentroā(ASSIS, 2009, p.20). Ć essa afirmação que quebra o silĆŖncio de Jacobina. Por muito tempo ele manteve-se em silĆŖncio, por muito tempo ele refletiu sobre si, mas só ali, naquela sala, para aqueles quatro amigos que conversavam sem parar, que Jacobina pode expressar suas conclusƵes.
Aos 25 anos, o jovem Jacobina fora nomeado alferes da Guarda Nacional. Vindo de famĆlia muito pobre, tal fato tornou-se motivo de orgulho. AtĆ© entĆ£o, o personagem principal possui domĆnio total de si. Encontra-se recheado de sentimentos como orgulho, alegria, contentamento, mas tambĆ©m encontra-se coberto de inveja e despeito; afinal, ele adquirira um status para o qual estaria muito aquĆ©m. Assim sendo, passou a ser conhecido como āo seu alferesā (ASSIS, 2009, p.22).
Sua primeira crise de identidade comeƧou a aparecer quando ele percebeu que nunca mais deixou de ser o alferes. Esse tipo de crise Ć© bem comum, nos dias de hoje. Por exemplo, quando Ana SimƵes (nome fictĆcio) exerce a função de docente, passa a ser conhecida em qualquer lugar como a Pró Ana, e se for professora primĆ”ria, Tia Ana. Perdera o sobrenome e ganhara um tĆtulo. Entretanto, essa perda de identidade nĆ£o se resume tĆ£o somente a ela: seu cĆ“njuge, Marcos SimƵes (nome tambĆ©m fictĆcio), por conseqüência, deixa de ser Marcos SimƵes e passa a ser o marido de Pró Ana.
E assim acontece com Jacobina. Ele vai passar um tempo com sua tia, e sua profissão de alferes é evocada constantemente como sua nova identidade. O personagem até insiste em ser chamado de Joãozinho, como era conhecido antes, mas só de alferes é tratado.
A segunda crise dÔ-se no momento em que Jacobina descobre-se só. Por mais que ele se olhasse no grande espelho que ganhara de sua tia, só enxergava o esboço de um homem trajando a farda de alferes. Numa manhã, ele percebe que não hÔ ninguém em casa. Nessa solidão, ele começa a analisar sua vida, sua alma, sua concepção de ser. Quando ele resolve olhar-se no espelho, depois de tanto tempo sem fazê-lo, ele começa a ver o esboço de um homem, o esboço do antigo Joãozinho, e então resolve pÓr novamente a farda de alferes e se olhar no espelho. Finalmente, ele percebe que se encontrou, percebe que juntara as duas almas: era Jacobina vestido de Alferes.
DORIAN NO PAĆS DA JUVENTUDE
No inĆcio do romance, Dorian Gray existe como algo de um ideal: ele Ć© o padrĆ£o da juventude e da beleza masculina. Como tal, ele cativa a imaginação de Basil Hallward, um pintor, e Lord Henry Wotton, um nobre que imagina transformar Dorian em um buscador incessante de prazer. Dorian Ć© extremamente vaidoso e se convence de que, no decurso de uma breve conversa com Lord Henry, que o sua mais saliente caracterĆsticas, sua juventude e atratividade fĆsica estĆ£o sempre a diminuir. O pensamento de acordar um dia sem esses atributos envia Dorian a pirar: ele amaldiƧoa a sua sorte e promete a sua alma, se pudesse viver sem ter de suportar a carga fĆsica do envelhecimento, o pecado. Ele deseja ser tĆ£o jovem e lindo como o retrato que tem pintado dele por Basil, e ele deseja que o retrato envelheƧa em seu lugar.
Dos trĆŖs, Dorian Ć© aquele cujo investimento na imagem Ć© absoluto, em reconhecer limite algum entre imaginação e realidade, desejo e identidade, o āeuā e o āoutroā. Ambos, Basil e Lord Henry, querem ter o quadro. Dorian quer ser a imagem a imagem do quadro. A razĆ£o para esse desejo forte o suficiente para dobrar a realidade Ć© que Dorian vĆŖ na pintura o seu próprio āeuā ideal: uma imagem do prĆncipe encantado, um personagem de conto de fadas impermeĆ”vel Ć mudanƧa, mutabilidade, envelhecimento e morte. Dorian nĆ£o consegue ser sofisticado o bastante entender a mensagem estĆ©tica que um quadro oferece ao seu pintor e ao seu admirador; Dorian “lĆŖ” apenas a imagem como uma representação do homem que ele quer ser. E assim, ele se esforƧa para se tornar esse homem, nĆ£o percebendo que no processo ele deixa de ser um homem em tudo.
HÔ um consenso de que existe uma troca entre Dorian e seu retrato: a alma. A alma acaba sendo perdida por Dorian quando ele se torna sua própria pintura, enquanto que seu o retrato assume a carga de seu corpo:
āā Tenho ciĆŗmes de tudo cuja beleza nĆ£o morre. Tenho ciĆŗmes do retrato que vocĆŖ pintou de mim. Por que eu deveria guardar o que seguramente perderei? Cada momento que passa leva algo de mim, e dĆ” algo a ele. Oh, se pudesse ser o inverso! Se o retrato pudesse mudar, e eu puder sempre ser o que sou agora! Por que vocĆŖ o pintou? Ele zombarĆ” de mim, em algum dia ā zombarĆ” terrivelmente!ā (WILDE, 2009, p.51-52).
Nesta cena, na qual ele faz o seu desejo, āse o retrato pudesse mudar, e eu puder sempre ser o que sou agora!” (WILDE, 2009, p.52), Dorian nĆ£o repudia a moralidade, mas a mortalidade. Por ter seu desejo atendido, Dorian conserva-se tanto das destruiƧƵes advindas da idade e das conseqüências advindas da experiĆŖncia: rugas, cabelos brancos, flacidez da carne, etc. sĆ£o transferidos para o retrato como as mais fieis expressƵes de crueldade, insensibilidade e corrupção moral. O retrato torna-se real, torna-se Dorian, fisicamente falando, enquanto o PrĆncipe Encantado torna-se a imagem passada para a sociedade.
O fato de matar Basil Ć© bem interessante. Ele nĆ£o mata Basil, apenas por matar, mas com o intuito de matar uma pessoa que se atreve a querer-lhe como um homem ao invĆ©s de uma imagem. Ambas sĆ£o tentativas de romper o vĆnculo entre o āeuā ideal e o seu āeuā real. Ele rejeita Sybil quando ela prefere o Dorian real ao PrĆncipe Encantado, e ele mata Basil quando o pintor fala o seu desejo de tĆŖ-lo nĆ£o como uma pintura do quadro. E por nĆ£o suportar ser visto como algo diferente de “um retrato gracioso”, eis que surge a cena final de homicĆdio-suicĆdio: Dorian esfaqueia o retrato com a mesma faca que matara Basil, na tentativa de expurgar todas as lembranƧas de si mesmo como um ser fĆsico e pintado, amarrado a uma sórdida história de violĆŖncia.
QUEM Ć VOCĆ? EU SOU ALICE!
Alice no PaĆs das Maravilhas, de Lewis Carroll, Ć© um conto de fadas sobre uma menina que tenta encontrar seu caminho em um mundo povoado por adultos grotesco, ilógico, infantil. O filme homĆ“nimo de Tim Burton impƵe nĆ£o uma, mas vĆ”rias crises de identidade. O longa-metragem comeƧa com Alice, os seis anos ā a mesma idade da Alice de Carroll ā, incomodada por pesadelos de um estranho reino subterrĆ¢neo, e precisando da confianƧa paterna antes de dormir.
Pai: Novamente o pesadelo?
(Alice confirma com a cabeƧa.)
Alice: Eu caà em um buraco negro. Então vi criaturas estranhas.
Pai: Que espƩcie de criaturas?
Alice: à um pÔssaro DodÓ, um coelho vestindo um colete e um gato soridente.
Pai: Eu não sabia que os gatos podiam sorrir.
Alice: Nem eu achava. E tambƩm uma lagarta azul.
Pai: Uma lagarta azul?
Alice: VocĆŖ acha que estou ficando louca?
(O pai de Alice põe sua mão sobre a testa da filha, averiguando se a mesma estÔ febril.)
Pai: Receio que sim. Você estÔ louca. Maluca da cabeça. Mas vou contar-lhe um segredo: as melhores pessoas são assim.
Até este ponto, Alice não parece ter a idade que tem. Sonha com coisas consideradas absurdas, e ao pai questiona sua própria sanidade mental. Treze anos mais tarde, Alice estÔ sendo empurrada para um noivado arranjado por sua mãe viúva. Na recepção no jardim do noivo, ela fica sabendo que vai ser pedida em casamento. Em uma conversa com sua irmã, Alice entra em uma nova crise de identidade.
Alice: Todos sabem?
IrmĆ£: Ć por isso que vieram. Esta Ć© sua festa de noivado. Hamish vai pedir sua mĆ£o, no momento certo. E quando vocĆŖ disser āsimā…
Alice: NĆ£o sei se eu quero me casar com ele.
Irmã: Então com quem queres? Você não vai encontrar um marido melhor do que um Lorde. Você tem quase vinte anos, Alice. Não vai ter essa cara bonita para sempre.
Aqui Alice depara-se no seu momento āDorian Grayā. A identidade momentĆ¢nea Ć© de uma moƧa na idade de se casar. Ć assim que a sociedade vitoriana regia. Alice nĆ£o se dĆ” conta desse momento, ainda nĆ£o assumira essa identidade imposta por aquela sociedade, e sua irmĆ£ a alerta que sua idade jĆ” āchegaraā, e que nĆ£o teria aquela beleza juvenil pela eternidade. A irmĆ£ de Alice Ć© lorde Henry de Dorian Gray: ambos acreditam que o tempo nĆ£o Ć© o melhor aliado da beleza e juventude.
Hamish: Alice Kingsley… Quer ser minha esposa?
Alice: Bem… Todos esperam que eu aceite… E vocĆŖ Ć© um lorde. Minha beleza nĆ£o Ć© eterna… E eu nĆ£o quero acabar como… Mas estĆ” acontecendo tudo tĆ£o rĆ”pido! Eu acho que… Me dĆŖem licenƧa!
O jovem aristocrata pede a mĆ£o de Alice, e, como dito anteriormente, ela nĆ£o estava preparada. No seu discurso, Alice mostra-se ciente da identidade que todos esperam que incorpore e de que sua beleza nĆ£o serĆ” sempre a mesma. Ela protesta e foge deixando todos na expectativa de sua resposta. Alice segue o coelho, cai no buraco e chega ao PaĆs das Maravilhas. Dentro de um mundo cheio de seres bizarros ā dragƵes como insetos, vegetação exótica, gĆ”rgulas, etc. ā a doce Alice se depara com um grupo, tambĆ©m exótico, de criaturas falantes reunidas: As Rosas falantes, o Coelho Branco, a ratinha Melly, o pĆ”ssaro DodĆ“ e os gĆŖmeos de cabeƧas e corpos arredondados Tweedledee e Tweedledum.
Coelho: Eu disse que ela era a Alice certa.
Rata: Eu não estou convencida.
[…]
Rosa: Esta não parece nada com a que eu vi.
Rata: Isso porque esta Ć© a Alice errada.
Tweedledee: Se fosse, poderia ser.
Tweedledum: Mas não é, é?
[…]
Alice:Como posso ser a Alice errada quando este Ć© o meu sonho?
[…]
DodƓ: Devemos consultar Absolum.
Rosa: Exatamente, Absolum saberĆ” quem ela Ć©.
Todos partem em direção a Absolum, a lagarta azul. Absolum, como do próprio nome deduz-se e segundo o Coelho Branco, āĆ© sĆ”bio, absolutoā. Ele sabe de tudo e de todos, ele deveria entĆ£o saber que Ć© Alice. E no encontro:
Absolum: Quem Ć© vocĆŖ?
Alice: Absolum?
Absolum: Você não é Absolum, eu sou Absolum. A pergunta é: Quem é você?
Alice: Alice.
Absolum: Vamos ver.
Alice: O que vocĆŖ quer dizer com isso? Eu teria que saber quem eu sou.
Absolum: Claro que você deveria, sua menina burra! Desenrole o OrÔculo.
Coelho: O OrĆ”culo Ć© um calendĆ”rio dos tempos do nosso paĆs.
Absolum: […] Trata-se nele de cada dia desde o inĆcio.
[…]
Absolum: Mostre-a o dia Frabjous.
Tweedledee: Sim, o dia Frabjous Ć© o dia em que vocĆŖ tem que matar o monstro Jabberwocky.
Alice: Como Ć©? Matar o quĆŖ?
Tweedledum: Oh, Ć©! Olhe vocĆŖ aĆ com a Espada Vorpal!
Tweedledee: E não hÔ como matar o Jabberwocky sem a Espada!
Alice: Essa não sou eu!
Rata: Eu sei!
Coelho: Resolva o nosso problema, Absolum. Ela Ć© a Alice certa?
Absolum: Dificilmente não.
Rata: Eu disse!
[…]
Rosa: Impostora! Fingindo ser a Alice. Deveria se envergonhar!
Coelho: Eu estava tão seguro de que era você.
Alice: Desculpe. Eu não pretendia ser a Alice errada.
[…]
Gato: Como vocĆŖ se chama?
Alice: Alice.
Gato: A Alice?!
Alice: JƔ houve discussƵes sobre isso.
Ć Alice Ć© posto em dĆŗvida sua veracidade existencial. Dizem toda vez que ela nĆ£o Ć© “a Alice certa”. Alice tem uma acentuada falta de personalidade em primeiro lugar. Ela fica atribuindo suas experiĆŖncias a um sonho ruim. Um pergaminho prevendo o futuro com seu nome como āo campeĆ£oā que vai derrotar o dragĆ£o da Rainha Vermelha, Jabberwocky, a faz pirar, pois a mesma nĆ£o se enxerga nessa identidade imposta pelo OrĆ”culo. O encontro posterior com o Chapeleiro Maluco e com a Lebre de MarƧo nĆ£o e diferente. O chapeleiro nota a diferenƧa da Alice de antes com a de agora, e assim afirma: “VocĆŖ perdeu sua āmuitisse”.
Alice finalmente acha sua identidade, ou pelo menos encontra uma e se apodera dela. Ela deixa de ser guiada, influenciada e decidida pelos outros e passa a tomar suas próprias decisões. E no filme isso fica claro em dois momentos distintos: Primeiro, na conversa que tem com o cão de caça Bayard, Alice deixa de ser menina e passa a ser mulher: toma suas próprias decisões não mais sendo guiada por influências externas, como as crianças geralmente são:
Alice: Qual seu nome?
CĆ£o: Bayard.
Alice: Sente.
CĆ£o: De alguma forma seu nome seria Alice?
Alice: Sim, mas não aquela de quem todos falam.
Cão: O chapeleiro não se entregaria por qualquer Alice.
Alice: Para onde o levaram?
CĆ£o: Para o Castelo da Rainha Vermelha, em
Alice: Vou resgatĆ”-lo.
CĆ£o: Nem mais um passo.
Alice: NĆ£o importa! NĆ£o ficarei parada aqui.
Cão: O Dia Frabjous estÔ próximo. Temos que preparÔ-la para seu encontro com o Jabberwocky.
Alice: Desde que eu caà no buraco do coelho, foi-me dito o que fazer e o que ser. Eu fui encolhida, esticada, machucada e ainda fui posta dentro de um bule. Fui acusada de ser a Alice e de não ser também, mas este é o meu sonho! Eu vou decidir para onde devo ir!
E depois, no seu Ćŗltimo encontro com Absolum:
Absolum: NinguƩm faz nada chorando.
Alice: Absolum? Por que estƔ de cabeƧa para baixo?
Absolum: Chega ao fim esta vida.
Alice: VocĆŖ vai morrer?
Absolum: Transformar
Alice NĆ£o vĆ”. Preciso de sua ajuda. NĆ£o sei o que fazer.
Absolum: Eu não posso te ajudar se você não sabe quem você é, menina burra.
Alice: Eu não sou burra! Meu nome é Alice! Eu vivo em Londres, tenho uma mãe chamada Helen e uma irmã chamada Margareth. Meu pai foi Charles Kingsley. Ele teve a idéia de uma viagem em volta do mundo e nunca nada o deteve. E eu sou sua filha. Eu sou Alice Kingsley!
Absolum: Alice… Finalmente. VocĆŖ era bem burra quando esteve aqui na primeira vez. Lembro-me que chamava esse mundo de PaĆs das Maravilhas.
Alice: Então não era um sonho. Era uma memória. Este lugar é real. E você é, e o Chapeleiro também.
Absolum: E o Jabberwocky. Lembre-se, a Espada Vorpal⦠você sabe o que quer. Tudo o que tem que fazer é segurÔ-la firme. Adeus Alice. Espero poder vê-la em uma outra vida.
Nesse momento, Alice encontra-se triste por todos estarem pressionando-a com seu ādestinoā. Neste encontro, Absolum estĆ” terminando seu casulo. Ć neste momento Alice se auto-afirma, Ć© nesse momento que ela se identifica como Alice, nĆ£o a certa nem a erra, apenas a Alice, sua verdadeira identidade. E Ć© ainda nesse momento que Absolum explica a Alice que ela jĆ” estivera no PaĆs das Maravilhas antes, e de repente a faz chegar a concusĆ£o de que o que ela sonhara todo esse tempo era simplesmente memorial de algo que realmente acontecera. Após essa revelação, Alice sente-se preparada para encarar a Rainha Vermelha e o Jabberwocky, e dominando a Espada Vorpal, cumpre o destino traƧado pelo OrĆ”culo, cumpre assim o seu destino.
Enfim, o filme Alice no PaĆs das Maravilhas, de Tim Burton, nĆ£o passa de um milkshake cujos ingredientes sĆ£o as estórias de Lewis Carroll (Alice no PaĆs das Maravilhas e Alice AtravĆ©s do Espelho) com um toque de criatividade de Burton. No filme, Alice se depara com a importĆ¢ncia e a instabilidade da identidade pessoal. Ela Ć© constantemente requisitada para identificar-se pelas criaturas que ela conhece, mas ela mesma acaba tendo dĆŗvidas sobre sua identidade. Depois de cair pelo buraco do coelho, Alice testa seus conhecimentos para determinar se ela se tornou outra menina. Entre outras coisas, a dĆŗvida sobre sua identidade Ć© alimentada pela sua aparĆŖncia fĆsica. Alice cresce e encolhe vĆ”rias vezes, que ela considera “muito confuso. O Gato Chershire indaga outro aspecto da identidade de Alice. Ele nĆ£o estĆ” questionando o seu nome, estĆ” questionando a sua sanidade. Uma vez que entra no PaĆs das Maravilhas, belisca-se e percebe que nĆ£o estĆ” sonhando, Alice comeƧa a acreditar que estĆ” louca. Apesar de Alice chegar ao PaĆs das Maravilhas segura de si mesma, sua identidade Ć© sempre questionada. Mas no final de tudo, ela se āencontraā, assume entĆ£o uma identidade que ela mesma quer.
METODOLOGIA
A principal motivação para a realização do trabalho cujas conclusões deram origem a este artigo surgiu da constatação de que hÔ um processo de produção de multi-identidades, ocasionando multi-crises intra/interpessoal, e que podem ser observados não só mundo real, mas também no mundo literÔrio. Antes de concluir o texto, este trabalho foi desenvolvido pela leitura atenta dos textos teóricos, através dos quais anÔlises posteriores foram fundadas.
Este trabalho teve, portanto, um estilo analĆtico, jĆ” que se debruƧou sobre diferentes estruturas literĆ”rias (romance, conto, filme), confrontando-as com a produção maciƧa do estereótipo da formação de identidade(s) e sua(s) crise(s). Seguindo os pressupostos de Identidade, crise e formação do sujeito de Stuart Hall, Erik Erikson e Carlos Rodrigues BrandĆ£o Ć© que este trabalho avalia o entendimento do(s) conceito(s) de identidade(s), nas obras de Machado de Assis e Oscar Wilde, bem como no filme Alice no PaĆs das Maravilhas, de Tim Burton.
CONSIDERAĆĆES FINAIS
O Conflito Cultural, ou seja, o choque entre culturas e/ou de uma mesma cultura de maneira intertemporal, deve ter algum tipo de efeito sobre o indivĆduo que estĆ” enfrentando tal conflito. Estes efeitos podem ser variados, alguns dos quais nĆ£o podem ser medidos ou observados. Um dos efeitos desse tipo de conflito poderia ser sobre a identidade do indivĆduo.
Nos Ćŗltimos estĆ”gios de sua existĆŖncia, Dorian odeia tanto o que ele era quanto o que se tornara. Ao mesmo tempo, ele abomina seu retrato decadente, que impiedosamente lhe mostra o caminho de toda a carne. Jacobina, por sua vez, odeia o que ele Ć©, o alferes da Guarda Nacional, e busca ser e mostrar-se imutĆ”vel, aquele JoĆ£ozinho de famĆlia humilde, como era chamado quando mais jovem. JĆ” Alice, Ć© a Ćŗnica das trĆŖs personagens que, sofre grande impacto com sua crise de identidade, quando duvida ser e nĆ£o ser as duas metades da laranja, como sugere Jung. Ć a Ćŗnica que escolhe ser quem acredita que Ć© e quem acreditam que seja, sendo a prova viva do equilĆbrio dos eus.
A identidade Ć© baseada em vĆ”rias sĆ©ries de identificaƧƵes em que a cultura e o patrimĆ“nio cultural desempenham um papel muito importante. Se um indivĆduo nega a sua cultura ou a certeza de seu compromisso com a sua cultura, se ele nega quem Ć©, quem foi e quem serĆ”, entĆ£o ele provavelmente tambĆ©m questiona a sua identidade pessoal. A alternativa Ć© desenvolver uma pseudo-identidade! Ć, portanto, seguro concluir que o conflito de cultura afeta a identidade bĆ”sica de um indivĆduo, deixando-o em crise de identidade, mas Ć© seguro assegurar tambĆ©m que a crise de identidade Ć© de fundamental importĆ¢ncia para a formação de um sujeito, seja ele sociológico e/ou pós-moderno.
REFERĆNCIAS
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WILDE, Oscar. O Retrato de Dorian Gray. Tradução de Marcella Furtado ā 5ed ā SĆ£o Paulo: Landmark, 2009.