SOBRE “AUTORIDADES” E DESACATOS
Rangel Alves da Costa*
Num país onde imperam as autoridades por hierarquia, função, cargo, poder ou até mesmo por se achar como tal, não se poderia esperar outra coisa senão as inúmeras ocorrências de supostos casos de desacato a autoridade.
Recentemente o Nenotícias noticiou dois casos dessa natureza. O primeiro foi sobre um juiz de Pernambuco que deu voz de prisão a dois advogados pela prática de desacato contra a sua pessoa enquanto magistrado. Os advogados, na defesa de seus clientes, procuraram o fórum para analisar decretos de prisão expedidos e não conseguiram tal intento, vez que o magistrado informou que não sabia onde estavam as ordens. Os causídicos reclamaram, bateram boca e acabaram sendo presos. O segundo caso envolveu uma advogada em Itabaiana, quando esta foi à delegacia defender um cliente e se desentendeu com um policial, que lhe deu voz de prisão e a colocou num camburão.
Casos como estes se tornaram práticas cotidianas que, pelas conseqüências causadas aos que são acusados de ofender, menosprezar ou humilhar, podem passar a se constituir num perigoso cerceamento de liberdade de expressão, do exercício profissional e até do pleno exercício da cidadania. Além disso, encouraçados pelo dispositivo penal que prevê o crime de desacato (“Art. 331. Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela: Pena – detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.”), muitos se arvoram do conceito de autoridade pública para agir com arbitrariedade, desrespeito e ignorância perante aqueles que, muitas vezes, precisam somente de uma informação.
O efetivo conceito de desacato deve ser analisado hermeneuticamente e de forma muito mais ampla do que o disposto na tipificação do art. 331 do CP. Segundo leciona Nélson Hungria, desacato é a grosseira falta de acatamento, podendo consistir em palavras injuriosas, difamatórias ou caluniosas, vias de fato, agressão física, ameaças, gestos obscenos, gritos agudos etc., ou seja, qualquer palavra ou ato que redunde em vexame, humilhação, desprestígio ou irreverência ao funcionário. Assim, desacatar é faltar ao respeito devido a alguém, desprezar, menoscabar, afrontar, vexar. Consequentemente, pressupõe que se alguém faltar com o devido respeito ao funcionário público, afrontá-lo, vexá-lo, estará cometendo o crime descrito na lei penal.
Contudo, a doutrina reconhece com unanimidade que a expressão “faltar o respeito devido a...” é muito ampla, não encerrando em si uma pretensão objetiva. E mais: depende do contexto em que ocorre. O que pode ser insignificante em certas situações, não o será em outras, como ensina Wilson Paganelli (http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=997). Assim, é no contexto em que ocorre e perante as características da pessoa enquanto funcionária pública é que reside todo o problema da caracterização do desacato à autoridade. Mas, o que seria uma autoridade para ser tão acobertada pela lei no exercício de sua função pública?
Analisando-se sob um aspecto geral, o conceito de autoridade está relacionado com o conceito de hierarquia e corresponde ao poder de comandar os outros e levá-los a agir da forma desejada. É, portanto, uma relação de poder que se estabelece de superior para subordinado. No mesmo sentido, o conceito de autoridade assenta no direito ou poder de mandar, de se fazer obedecer, de administrar ou legislar, o que se traduz numa missão de quem detém esse poder. Por sua vez, de modo específico, autoridade pública é aquela pessoa que investida na função pública tem efetivamente o poder de decisão, mando, figurando como competente e responsável pelo ato administrativo. E ainda, autoridade é constantemente relacionada a um poder face ao qual os indivíduos tendem a inclinar-se, por temor ou por respeito.
Não obstante os conceitos apresentados, verdade é que acostumamos a ver o desvirtuamento das bases legais, éticas e morais da autoridade, em nome do exercício arbitrário dessa mesma autoridade. Daí, razão possui Hannah Arendt ao afirmar que o primeiro passo da autoridade é estabelecer um poder a qualquer custo, e esse poder leva consequentemente a ações arbitrárias de força para mantê-la também a qualquer custo. É isto que se vê nas ações arbitrárias daqueles que se prevalecem do conceito de autoridade estabelecido implicitamente na lei penal.
É inegável que o legalmente previsto deve ser cumprido, mesmo que a própria lei não esteja atenta para as transformações históricas nem para as mudanças sociais. Se a lei diz que agredir ou macular a imagem de uma autoridade (teria que prever quais e tais autoridades, quais cargos e funções caracterizam um exercício de autoridade) é crime, que assim seja. Entretanto, é também inegável que a dita autoridade, para que tenha a lei em seu favor, deva, ao menos, ter as características básicas do homem civilizado: ter respeito ao próximo, compreender o outro, saber ouvir e saber falar. Ninguém tem dono; ninguém gosta de ser destratado pelo dono do paletó, da farda, do crachá ou da arma; ninguém nasceu para ser submetido por doutor, delegado, policial ou qualquer agente público. Por outro lado, essas presumidas autoridades sentem o maior prazer em desfazer, esculhambar, deixar lá embaixo a auto-estima dos outros.
Quer dizer, a “autoridade” pode fazer o que quiser com o outro, tratar mal, esnobar, usar palavras e gestos ofensivos, mandar calar a boca e respeitá-lo, e mesmo assim estará agindo na plena legalidade. Todos sabem que é isto o que realmente ocorre, principalmente em delegacias. Fazem isso com advogados, no pleno exercício de suas funções e prerrogativas, e imaginem o que não fazem com outras pessoas. O pior é que, no momento, ninguém pode fazer nada diante do “Você sabe com quem está falando? Você está preso por desacato a autoridade”.
Um dos graves problemas neste contexto diz respeito à defesa, à apresentação do contraditório. É que nestes casos nunca são consideradas as circunstâncias, as ofensas proferidas pela dita autoridade, o estado emocional do suposto ofensor nem os elementos que realmente possam caracterizar o desacato. É ação de uma só via, somente a de quem se sente desacatado. O pior é que nesta relação a verdade sempre estará com a “autoridade”, e sabemos que qualquer um destes contumazes mal-intencionados pode simplesmente mentir ou criar uma situação somente para prejudicar o outro. Ademais, é a própria “autoridade” que pode dar a voz de prisão. “Teje preso”, e acabou.
Provado está que nem todos são iguais perante a lei, pois existem as “autoridades”. E estas representam um perigo para as pessoas comuns. A verdadeira autoridade deve saber limitar suas exigências; a verdadeira autoridade não pode manipular os fatos por conveniência egoística; a verdadeira autoridade tem que ter a consciência que esta vem do cargo e não da pessoa. Aí sim, haveria respeito e verdadeira autoridade.
Advogado e poeta
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